Crônicas da Velha Ribeira (5)

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Durante um certo tempo, a MARPAS comercializou os carros da marca GURGEL, idealizados e fabricados pelo industrial João Conrado do Amaral Gurgel, que tinha raízes aqui no Estado, conforme atesta o sobrenome, de conhecida família. Esses carros eram montados sobre chassi Volkswagen, especialmente cedidos a ele, pela montadora de São Bernardo do Campo (SP).

Dentre os modelos que montava em sua fábrica – localizada na cidade de Rio Claro, no Estado de São Paulo – apenas o jipe X-12, veículo de excepcional resistência, tinha boa aceitação em nosso mercado. Os demais modelos eram de difícil colocação, fato que gerava constantes conflitos com o fabricante e findou sendo o principal motivo de havermos desistido de representa-los.

“Seu” Gurgel queria um crescimento de vendas incompatível com a aceitação dos novos modelos que lançava. Eram carros bons, fortíssimos, duráveis, quase indestrutíveis por terem carrocerias de fibra de vidro, imunes, portanto, à ação da ferrugem que age fortemente sobre flandragem, especialmente em veículos que transitam à beira-mar. Mas, o mercado não os absorvia bem. Era frequente, pois, a vinda aqui de representantes e inspetores da fábrica GURGEL, para ver de perto se estávamos fazendo o “dever de casa”, uma vez que acreditavam não estar havendo esforço de vendas, de nossa parte. Não viam que o modelo X-15, por exemplo – só para citar um dos mais difíceis de vender – não “colava”…Nem cá, nem lá.

Um desses representantes, era um sujeito chamado Jorge Marino, boa gente, mas cheio de idéias que não se aplicavam ao nosso meio, como é comum às montadoras de automóveis, que têm como “laboratório” o desempenho nas regiões Sul e Sudeste e querem que se faça aqui o que se faz lá, o que nunca dá certo. E qual era o procedimento que se tinha, naqueles tempos, quando chegava aqui um camarada que, por cá, nunca havia andado? Ora, levava-se o home p´ra Carne de Sol doLira! Pois foi o que fiz com Jorge Marino, na primeira vez em que pôs os pés na MARPAS. Naquela época Lira atendia pessoalmente no seu restaurante, que ficava naquele prédio com azulejos na fachada, na “divisa” da Ribeira com as Rocas e que ostentava um luminoso da Brahma de um lado e da Antarctica do outro, conforme exigência do próprio, quando uma dessas marcas de cerveja se ofereceu para colocar seu anúncio na fachada do prédio. Lira não admitia favorecimento e disse que se um botasse seu ”reclame”, o concorrente teria de botar também o dele…Isso era bem típico dele, que era meu amigo e nos recebeu da maneira como sempre recebia os amigos, pois, para os desconhecidos – principalmente se “saíam um pouco da linha” – era mais grosso do que papel de embrulhar pregos. Mas, quando nos trouxe aquela carne suculenta, cheirosa, coberta com apetitosa manta de gordura, Jorge Marino fez cara de nojo e, ante um perplexo Lira, deitou sabedoria filosófica dizendo que Deus, quando fez os animais carnívoros, dotou-os com grandes presas para que eles comessem carne, porém, ao fazer o homem à sua imagem, atribuiu-lhe dentes apropriados para comer legumes, verduras, frutas e – vá lá que seja – até mesmo peixe, mas nunca, nunquinha mesmo a tal da carne…Esperei que o velho Lira expulsasse Marino de seu restaurante – como seria próprio dele – e até mesmo temi que jogasse a travessa de carne na cabeça daquele paulista besta! Em vez disso, no entanto, numa atitude inesperada e inacreditável, me disse que aguardasse um pouco e retirou-se em direção à cozinha, voltando pouco depois com uma tigela de ovos cozidos misturados com farofa de feijão verde, que ofereceu ao vegetariano, talvez o primeiro com quem cruzou na vida. Refeito do susto, fiz o “sacrifício” e tracei sozinho aquela tora de chã-de-fora, enquanto Jorge Marino comia ovo com feijão verde, sem fazer a mínima ideia do perigo a que esteve exposto.

E saí dali com a prova cabal de que Júlio Lira era realmente meu amigo…

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