A nova definição do quilo começou a valer. O que muda com isso?

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Você entra na farmácia para conferir o seu peso, tira os sapatos e o vê visor da balança denunciar: 75 Kg. Mas o que, exatamente, isso significa? Quem é leitor fiel da SUPER conhece essa resposta de trás para frente. Mas, para que nenhum desavisado pare a leitura, daremos uma relembrada rápida.

A massa de qualquer coisa que existe no mundo, desde um átomo até o meteoro de Chicxulub, é definida a partir de um mesmo referencial, chamado de IPK. Por quê? Porque cientistas do século 19 quiseram que fosse dessa maneira.

Toda vez que você diz que determinada coisa “pesa” um número em quilos, é como se você estivesse comparando sua massa ao IPK, um cilindro de platina e irídio com 3,9 centímetros de tamanho. Ele fica guardado a sete chaves no interior da França – e é essencial que seja exatamente assim. Estragá-lo ou perdê-lo faria causaria um caos completo, já que não teríamos outro referencial oficial e definitivo para que é um quilograma.

“Fui só até a porta. Não deixam nem entrar nem sala. Tem alarme, chaves especiais, mesmo técnicos não têm acesso”, comentou Anderson Beatrici, chefe substituto do Laboratório de Massa do Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia) sobre o nível de segurança a que o quilo oficial está sujeito na França.

Beatrici visitou a sede do BIPM (Escritório Mundial de Pesos e Medidas), onde está o IPK, em abril de 2019. O objetivo da missão era nobre: levar a cópia brasileira do quilo original, a gêmea de número 66 (que você vê na imagem acima), para ser recalibrada.

Vários países do mundo tem uma cópia do quilo original para chamar de sua. A cada dez anos, elas precisam ser comparadas com o IPK – ou melhor, com um dos seis que são seus irmãos gêmeos oficiais, já que o quilo legítimo não sai de sua caverna nem sob decreto presidencial. Assim, garante-se que as medições feitas no Brasil estão corretas. E que a indústria e o comércio sigam padrões de medida da forma mais precisa possível.

Há, claro, um problema com esse referencial: por ser um objeto físico, concreto, o quilo usado como referência pela humanidade está sujeito à ação do tempo. Foi o que aconteceu com o IPK, o referencial máximo: mesmo com toda a segurança e cuidado com seu manuseio, sabe-se que ele ficou pelo menos 0,00005% mais leve do que era originalmente – e que vai continuar se desintegrar minimamente, devagar e sempre, mas o suficiente para alterar o referencial ao longo do tempo. A primeira mudança foi notada ainda em 1992, o que colocou os cientistas para trabalhar em uma alternativa.

A solução para o problema de um quilo (que já não vale mais um quilo) veio em definitivo só em novembro de 2018. Após muitos anos de estudos, duas Conferências Internacionais de Pesos e Medidas e diversos testes, cientistas definiram que o quilograma passaria a ser calculado a partir de uma constante matemática, chamada constante de Planck.

Como o próprio nome diz, ela é constante. Ou seja, pode ser estimada em qualquer lugar do mundo e será exatamente a mesma. Para calculá-la, porém, é necessário um equipamento extremamente preciso, chamado de balança de Kibble. Como cientistas finalmente conseguiram criar balanças de Kibble precisas o suficiente para errar pouquíssimo na conta, ficou acordado que o novo método passaria a valer em 20 de maio de 2019.

Chegamos, finalmente, aos dias atuais. Não quer dizer que, do dia 19 para o dia 20, todas as balanças do mundo precisarão ser ajustadas uma por uma. Ou ainda, que o tomate que você compra na feira ficará mais caro – ou mais barato – por conta disso.

“Para o comércio e população e em geral, não muda nada”, diz Beatrici. Isso porque a diferença entre um quilo calculado em uma balança de laboratório e na de farmácia, como você pode imaginar, é muito pequena. Da ordem de microgramas, para ser mais preciso. Ao medir coisas muito pesadas, a diferença passa despercebida. Mas e se o referencial são pesos na ordem das nanogramas – como compostos usados na indústria farmacêutica, por exemplo? Aí, sim, a diferença aparece.

Temos balanças de Kibble fiéis e, assim, a indústria está a salvo de quaisquer enganos com proporções de massa. E o quilograma está devidamente pronto para ser aposentado e virar peça de museu… certo?

Não exatamente. Vai demorar até que o método tradicional, baseado em cilindros de metal, seja abandonado de vez. Questão de segurança, é claro.

“O protótipo internacional não será aposentado de cara. Todo metrologista é muito conservador. Metrologia é confiança. Não podemos trocar de método assim”, diz Beatrici, à SUPER. “Imagine se jogamos todos os protótipos fora e alguém descobre que a balança de Kibble está errada?”. Segundo o metrologista, os dois sistemas ainda devem conviver em paralelo por alguns anos. Isso porque muitos lugares ainda não conseguem replicar cálculos tão precisos quanto os feitos pela balança de Kibble. Vários sequer contam com uma versão rudimentar do equipamento, que, segundo Beatrici, custa na faixa de alguns milhões de dólares para ser desenvolvido.

O Brasil, por exemplo, está nesse balaio. É verdade que o Inmetro vem trabalhando em uma versão da balança capaz de pesar objetos com margem de erro de 0,01%. O protótipo deve ir para fase de testes dentro de um ano.

Enquanto não temos soluções certeiras por aqui para fazer medições tão precisas (isso deve levar de cinco a dez anos) a alternativa é contar com a ajuda dos vizinhos. Não dependeremos mais do quilograma francês diretamente – mas vamos depender, agora, dos cálculos do quilo feitos por laboratórios dos Estados Unidos ou do Canadá. Isso se quisermos manter precisão máxima, é claro.

Mesmo assim, é certo que não jogaremos fora a cópia 66 tão cedo. Ela segue resguardada na sede do Inmetro em Duque de Caxias (RJ) há mais de 25 anos – e vai permanecer lá mesmo quando a medição matemática do quilo for possível no Brasil. “[Os quilos genéricos] não vão ser jogados fora, com certeza. Eles são feitos de uma liga com 90% platina, que é mais cara que ouro. Vamos guardar como sempre guardamos, dentro de um cofre”. E ai de quem sugira largá-la em um museuzinho qualquer.

Fonte: Revista Superinteressante

Imagem: Anderson Beatrici/Inmetro/Reprodução

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