O enigma do pântano II

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Minha filha está certa: nada mais patético e deprimente do que a visão de um homem bêbado, sobretudo, quando se esse homem é nosso pai. Mas o que ela ainda não sabe, do alto dos seus oito anos de idade, é que, às vezes, os dias são invencíveis. E essa sensibilidade — que tenho arraigada comigo sempre a flor da pele — e esses olhos rasos d’água e essa língua enrolada, enquanto penso esta crônica — é o resultado do caos no meu sistema límbico onde meus neurotransmissores estão neste momento todos alterados. É um confluir de sentimento e sensações, que, em sua grande maioria, apontam para o passado: minha Madeleine que me vêm ácida e líquida — descendo pela minha garganta, embalada numa latinha de alumínio que me deixa assim com ares de idiota — a exemplo de um tolo romântico: imbuído de paixão.

O passado é o último lugar da memória em que nos toma a natureza. Minha mãe, que em seu estado de demência avançado não conseguia lembrar-se, por exemplo, em qual dia se encontrava, para meu espanto, lembrava-se nitidamente de coisas de seu passado — e assim passou os seus últimos dias como se estivesse vivendo há mais de 50 anos! — Um psiquiatra, que lhe acompanhava à época, falou-me que o processo degenerativo da memória era assim. Primeiro iam-se os fatos recentes, e, por último, os mais antigos. Com esforço, às vezes ela até sabia o meu nome, outras, me tomava por Jesus.

Ao exemplo da demência de minha mãe, além agir sobre minha serotonina, o álcool sempre evoca, em mim, memórias emotivas — e acho, a todo homem quando está bêbado, quando não se é uma besta violenta, mas sim a mais fina flor da espécie, sentindo-se, finalmente, capaz de amar uns aos outros como vos amei. Um homem bêbado é capaz de ser um palhaço, quando nenhum outro Ser humano assume: o patético, a fragilidade. Ri com os outros de si mesmo. E quando se está assim, vive num mundo à parte. Porque ao contrário do que muitos imaginam, para se construir um mundo, não há necessidade de armações de concretos. Um mundo se faz de recordações. Deste modo, quanto um homem bêbado, só posso admitir a “Cidade da Esperança”, bairro da Zona oeste de nossa cidade, quando vejo a mim e a outros quatro ou cinco moleques sentados à noite, todos os dias da semana, na calçada dos meus pais — e o velho me colocando para dormir, cedo da noite, e os quatros ou cinco moleques que estiveram em minha companhia até aquele momento a acenar-me com as mãos, fazendo troça. Olhar para baixo e encontrar os dedos dos meus pés encardidos de andar aquelas ruas poeirentas, sem calçamento, sempre atrás de uma bola, e depois, voltando para casa, — quando o sol se punha — com um olho roxo, porque havia brigado na rua.

Quando em bandos corríamos atrás de Vida Boa, dizendo-lhe às costas “Vida Boa, Vida Boa”, e ele nos devolvia “Vida boa é a tua, filho da puta” jogando sempre um pão no lixo, que acabara de receber de alguma das casas ao qual pedira — porque não tinham passado nem manteiga. Ou quando ainda, do mesmo modo perverso, dizíamos “Boneca preta, Boneca preta” e Marta, brandido uma vara no ar onde usava para se sustentar, falava:seus pestes, vou dizer a mãe de vocês”, e que, claudicante, nunca nos alcançava, pelo problema de locomoção. E seu Zé do café, que sempre passava na casa dos meus pais de manhãzinha, logo cedo, a fim de tomar um cafezinho, e que sempre encontrava resistência na figura de meu pai, para lhe dar esmolas, e que sempre minha mãe dava um jeitinho de lhe dar além daquele café escondido uma ou outra coisa para forrar o estômago. Seu Zé do café, que um dia acordou e se jogou da Ponta velha.

Ah, minha filha, me desculpe, porque ainda não aprendi a domar esses dias imbatíveis, cinzentos. Entretanto, haverá um dia em que simplesmente nós começaremos a esquecer de todos os outros: como este dia agora, em que escrevo este texto, e que talvez amanhã mesmo, com uma puta ressaca, não me reconheça mais nele, não me recorde, como alguém que de repente acorda ao lado de um estranho, sem, depois de uma noite de orgias, nem ao menos lhe saber o nome e essa fuga, essa nostalgia, seja apenas coisa de bêbado.

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