A cruzada da estupidez e da ignorância

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Devo muito às histórias em quadrinhos. Para mim, o caminho até à literatura, foi pavimentado por esta antiga forma da comunicação humana — se aqui pensarmos nas iconogravuras dos homens das cavernas como arte sequencial. Talvez não tivesse chegado a Henry Miller, Dostoiévsky, William Blake, Tolkien, sem a Hq Moonshadow, do inglês J.M de Matteis, por exemplo. Talvez não tivessem sido literalmente de encher os olhos, e sim enfadonha, àquelas páginas, onde pude conhecer, ainda aos treze anos de idade, Cyrano de Bergerac e a Hamlet — que os amigos me caçoavam porque nem mesmo sabia pronunciar o nome corretamente do angustiado Príncipe da Dinamarca. E o que foram para mim Alan Moore, Frank Miller, Grant Morrison, Neil Gaiman, senão minha geração beat? Poesia e subversão?

Os de minha geração sabem o que tivemos que enfrentar: narizes tortos e muxoxos de alguns “adultos”, a desconfiança ao falarmos sobre “histórias em quadrinhos”, e depois, por parte do meio acadêmico, como algo menor, algo, por assim dizer, um passatempo infantil — sabem sobre uma revolução silenciosa que nos abateu, enquanto crescíamos ao mesmo tempo em que passeávamos os dedos e olhos sobre aquelas páginas coloridas, e mesmo hoje, adultos, não se tornaram homens tão indiferentes a essa marca.

As histórias em quadrinhos nos deram entendimento e liberdade, e alguns centímetros acima de nossas cabeças antes mesmo que chegássemos à idade adulta — e com o devido respeito aos nossos educadores, pouco, ou muito pouco, aprendemos em sala de aula, por exemplo, sobre filosofia ou literatura, do que não tenhamos alcançado antes, bem antes em HQ´s — e sei que não deveria, mas é sempre bom lembrar, por exemplo, quando em 1991 a revista Sandman foi contemplada com o tradicional prêmio literário Word Fantasy Award, como melhor história breve. Tal prêmio, até então, era dado a escritores “sérios”, que escreviam livros. E de outro bom exemplo, com a HQ Maus, de Art Spiegelman, ganhadora de um Pulitzer.

Então, dito isso, você deve imaginar que não foi sem surpresa que alguém como eu tivesse sido apanhado com a notícia sobre a ordem que partiu do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, para que fosse recolhida uma revista em quadrinho com um suposto conteúdo pornográfico na Bienal do livro. Quando escrevo “não foi sem surpresa”, na verdade estou apenas fazendo uso de uma figura retórica de imagem, a fim de ilustrar o que digo — porque, atualmente, e a bem da verdade, nada me surpreende, sobretudo, partindo de alguns governantes que acham, por exemplo, que podem até nos dizer até o que devemos consumir, tendo suas doutrinas religiosas e ideológicas como medida. Como se fossem os detentores da própria Manopla do destino.

O caso envolvendo a “revistinha” da Bienal lembrou-me outro caso emblemático, que aconteceu em 1954 nos EUA, no auge da caça as bruxas do Macarthismo, quando um psiquiatra alemão, radicado nos Estados Unidos, Doutor Fredric Werthan, publicou um livro com o resultado de suas pesquisas, em que nele tentava demonstrar a influência das Hq´s na delinquência juvenil, intitulado Seduction of Innocent. Foi a partir deste livro que, por exemplo, o Batman passou a ser visto não como um justiceiro encapuzado, mas como um homem que abusa sexualmente de um menor, no melhor estilo quando vemos pelo em ovo.

A publicação do livro do Dr. Werthan foi mais do que o suficiente para que alguns autores fossem convidados pela comissão do senado norte americano a darem explicações, para que algumas revistas fossem canceladas — como a Cripta do terror — e que por fim, dali nascesse também o Código dos Quadrinhos (Comic Cody Authority); um tipo de censura, onde só era aceito o fosse moralmente viável para a formação das crianças — segundo essa comissão.

O que me parece é que as histórias em quadrinhos ainda hoje são vistas como apenas algo de cunho estritamente infantil — quando infantil na verdade é a postura dos que assim as julgam desta forma — Talvez, em sua aurora, quando os textos em sua maioria eram algo mais ingênuo, no final da década de 30 até fins dos anos 50, mas a partir do universo Marvel, mais precisamente em 1964, já havia a problematização do que se seguiam nas ruas e na vida dos adolescentes — a princípio, seu público alvo — com temáticas que iam desde a intolerância racial, questões ambientais ou mesmo as indagações de cunho existencial e psicológico — jovens universitários, por exemplo, adoravam as histórias do Dr. Estranho. E as palestras de Stan Lee, nos Campus, sempre lotavam. E logo mais a frente, nos anos setenta, o Homem-Aranha teve de lidar com o assassinato de sua então namorada, Gwen Stacy, pelo seu arqui-inimigo, Duende Verde, e o parceiro do Arqueiro verde, Ricardito — ambos, personagens da Dc Comics — sofria com o vício em heroína.

O Doutor Werthan, anos depois, negou que fosse “contra os quadrinhos”. Enfatizou, inclusive, aspectos benignos da subcultura fandom, em outro livro: The World of fanzines, de 1973. E Há muito, nos EUA, que o tal Comic Code se tornou irrelevante. E em 2003 um artigo publicado Doutor Carol L. Tilley, da Universidade de Illinois, no Information & Culture: A Journal of History, afirma que os dados postados pelo Dr.Werthan, foram na verdade, manipulados. Segundo Tilley, “o livro possui péssima documentação. Não existem citações diretas ou bibliografia. Não há meios exatos de saber quais as bases dos fatos relatados ou das pessoas mencionadas. Quando tentou corroborar as informações publicadas com as entrevistas com os pacientes, ela encontrou dezenas de distorções, omissões e até mesmo invenções por parte de Wertham”.

A prefeitura do Rio de Janeiro tentou proibir a venda da HQ na Bienal do livro, levando o caso ao STF. O embate não só fez com que todas as revistinhas fossem vendidas em apenas meia hora, como muito material literário de temática LGBT. A revista que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tentou banir da bienal do livro, de uma forma nunca vista em 38 anos de bienal, chama-se “Vingadores: A cruzada das crianças”, então, nada mais justo para com a revista para dar a está minha crônica o título de “A cruzada da estupidez e da ignorância” — ao falar de seus arqui-inimigos. Porém, ao apagar das luzes, no auge da grande batalha cósmica, o STF deu favorável a organização do evento, impedindo assim que o material fosse aprendido pelos funcionários da prefeitura. Só quem já leu uma hq, sabe: no mundo dos super-heróis, o bem sempre vence.

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