A bruxa

Ela havia sido uma grande dama. E por mais que as acusações que lhe foram imputadas fossem frágeis, por mais que as provas não fossem robustas o suficiente, os juízes não se sensibilizam ao lhe condenar à fogueira, pela peste dos lagostins causada no Mosteiro de Clara. Assim foi Katharina Henot — sentenciada formalmente nos autos de um processo — pela prática da magia maléfica… mas isso foi há muito tempo, há quase quatrocentos anos e talvez você nem mesmo tenha ouvido falar dessa jovem, até então uma influente comerciante de sua região, viúva, dona de um serviço de correios, que viveu em uma cidade Alemã chamada Colônia. Sobre os suplícios no flagelo que a deixou aleijada e doente — até o dia em que enfim padeceu, estrangulada por um carrasco. Henot fora denunciada por um freira “possuída”, do Mosteiro de Clara. Mas como encontramos uma bruxa?

Na época do processo, em 1627, havia um manual muito popular por aquelas bandas, inspirado pela bula Papal de Inocêncio VIII, a Summis desiderantes affectibus, escrito pelos Frades dominicanos Heinrich Kraemer e James Sprenger. Entre outras coisas, só pelo fato de ter nascido mulher, você já corria grandes desvantagens, haja vista que na própria natureza feminina o pecado já vinha como apêndice ou defeito de fabricação. Daí, se você fosse do tipo muito magra, tivesse algum sinal no corpo (para isso eram colocadas a nu), fosse muito feia e, principalmente, se você negasse a sua “fé”, haveria grandes possibilidades que você fosse aliada ao capeta e, assim como ele, queimaria também no fogo.

“Não era um pensar novo. Antes disso, as mulheres já eram apresentadas como o elemento ruim e fraco da sociedade. Mas o Martelo das Bruxas reforçou essa visão. Ele cuidou para que gente que, de alguma forma, era diferente da maioria, fosse mais rapidamente perseguida. A sociedade hegemônica assegurou seus próprios valores ao eliminar os marginais, como diríamos hoje” disse a historiadora alemã Irene Franken ao site DW Brasil — não sei à você, mas a mim isso soa bem familiar.

A exemplo da cidade alemã de Colônia de 1627, hoje também podemos encontrá-los — homens ou mulheres — e daí os lançamos numa fogueira. Temos um manual para faze-los arder. E para isso, quando os encontramos em pecado, dizemos que não estão alinhados. A estes hereges damos o nome de ‘Artista’ (dei a este substantivo uma letra maiúscula, porque acho que lhes convém).

O Artista, seja ele qual for, não é como o verso do poema que diz: “lá sou amigo do Rei” — mas o menino, que inocentemente grita na multidão: “o rei está nu!” — o Artista é, e sempre será o grito, a voz que destoa do coro, desafinado, o que aponta, o que incomoda. E o Rei, afinal, tem todo o direito de se preocupar porque quando o Artista está “alinhado” com qualquer coisa que não seja a sua verdade, mas a verdade do outro, deixa de estar fazendo Arte para ser apenas uma peça na engrenagem, mais um na multidão.

Todo Rei sabe, Arte — com esse “a” maiúsculo — é algo,  por assim dizer, perigoso.

Não a toa o poeta russo Maiakovsky deu um tiro no próprio peito, esmagado pelo Stalinismo — por não ser um poeta que se encaixava nos moldes da arte proletariada, como o realismo, que dizia mais ao povo — Mikhail Bulgakov, romancista e dramaturgo russo, que de 1926 até 1940 — ano de sua morte por insuficiência renal — nunca mais conseguiu publicar outro livro ou trabalhar no teatro, porque fora acusado de contrarrevolucionário — e que, inclusive, com tamanho desespero, foi capaz de enviar uma carta ao próprio Stalin, falando de perseguição, mas mesmo assim, sua obra permaneceu muda. Até o fim.

Na Alemanha nazista, os que não estavam alinhados com o regime, os que não fugiram, ou foram mortos,  foram, por exemplo, seduzidos, como o dramaturgo Gustaf Grüdjens, que na juventude defendeu um tipo de dramaturgia revolucionária — próxima ao comunismo — e , com a ascensão de Hitler, debaixo das asas de Hermann Göring, se tornou diretor dos teatros públicos de Berlim e do Conselho de Estado da Prússia numa ascensão meteórica, contada em forma de ficção por seu ex-cunhado e depois desafeto, Klaus Mann — Mephisto.

Passados trezentos e noventa e dois anos, em 2012, Katharina Henot , foi, enfim, absolvida. E esta semana, a atriz Fernanda Montegro, com quase setenta anos de  dramaturgia foi atacada pelo diretor da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), Roberto Alvim, alinhado com o governo, que, entre outras palavras — no melhor estilo cristão inquisidor —  a chamou de sórdida e mentirosa — por conta de uma capa de revista, em que a atriz posa amarrada a cordas, com vários livros aos pés, próxima a um fogueira.  Disse ainda o diretor da FUNARTE que estava “em guerra irrevogável contra a classe artística — e você aí, sentado, lendo este texto, que achava que bruxas não existiam…

Sair da versão mobile