Esparrelas da língua – Por João Maria de Lima

Esparrelas da língua - Foto: Reprodução / Jornal Cruzeiro do Sul

É fundamental estar em dia com as concordâncias, com os verbos, para não perder chances, oportunidades, às vezes, únicas. E é muito comum achar que já sabemos tudo e em seguida escorregarmos nas cascas de banana que a língua portuguesa põe em nosso caminho. A língua é ardilosa e, por isso mesmo, encantadora.

Machado de Assis escreveu: “Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho. Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas”. Dependendo da maneira como se vê, o aprendizado da língua pode ser, em vez de uma pedra no caminho, uma jornada saborosa. Vejamos, em alguns casos, por que a flor do Lácio nos instiga tanto.

Em ano eleitoral, é bom ficar atento a algumas frases. Por exemplo, a gramática condena a sentença “Há muitos candidatos a vereadores”. Apóscandidatos a”, usa-se apenas singular, pois se faz referência à profissão, ao cargo, à função. Assim também agimos com outros cargos:“Quantos candidatos a senador existem?”; “São muitos os candidatos a prefeito”.

Na língua portuguesa sempre houve predominância pelo masculino. O que pouca gente sabe é que essa preferência nos faz construir frases comoLuísa e Teresa são candidatas a vereador”. Usa-se no masculino singular (vereador), embora sejam pessoas do sexo feminino aquelas que disputam o cargo. Também é o masculino singular que se usa nestes casos: Maria e Ana também são candidatas a vereador e a prefeito em 2020”. A flexão (vereadoras, prefeitas) só teria cabimento se o cargo estivesse à disposição única e exclusivamente de pessoas do sexo feminino.

O escritor, poeta e teatrólogo polonês Isaac Leib Peretz, mais conhecido como I. L. Peretz, disse: “A língua vive, regenera-se e progride. A gramática e o dicionário devem arrastar-se atrás dela.” Um caso que ilustra bem isso é o da dupla “malformação/má-formação”. Na acepção de anomalia, deformação, os médicos não se entendem. Os dicionaristas consideram as duas formas sinônimas. Nós ficamos com uma ou com outra. Podemos escolher.

Por falar em medicina, mais dois casos merecem atenção. O primeiro em dose tripla: enfarto/enfarte/infarto. As três estão dicionarizadas. O bom mesmo é não ter. O outro caso curioso é o de “diabetes”, substantivo de dois gêneros e dois números: o diabete, a diabete; o diabetes, a diabetes. Mesmo com “s”, exige artigo e adjetivo no singular: diabetes juvenil, diabetes sacarino ou sacarina, diabetes melito.

Duas expressões empregadas de forma equivocada constantemente são “à custa de” e “em via de”. Ambas pedem o singular, ao contrário do emprego mais comum. Logo: “Os filhos viajaram à custa do pai”; “O acordo está em via de ser assinado”.

“com vistas a” e “com vista a” é um caso de preferência de quem escreve. Os dicionários registram as duas formas, que significam “a fim de”, “com o objetivo de”: “Remeteu o processo à Procuradoria com vistas (ou com vista) à elaboração de parecer”.

Embora muita gente veja contradição na locução “muito poucos”, ela é válida. O “muito” não quer saber de feminino ou plural. O preguiçoso fica invariável: “Havia muito poucos candidatos no partido”.

Para encerrar, volto ao tema das eleições. A campanha está no ar, ou melhor, nas redes sociais, embora ainda não oficialmente. Com ela, volta à tona um plural especial: o de modéstia ou majestático. No fundo, não passa de um enganador. A pessoa usa o “nós”, mas quer dizer “eu”. Esse era um recurso empregado por reis e papas, daí o nome “majestático”. Virou expediente retórico. Os políticos se valem dele: “Nós somos o prefeito de todos os munícipes”. O verbo vai ao plural; os substantivos e adjetivos não. E assim segue a língua, “armando ciladas para apanhá-lo em alguma de suas palavras” (Lc 11,54).

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto: Reprodução / Jornal Cruzeiro do Sul

 

 

 

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