Clareza: virtude da língua – Por João Maria de Lima

Clareza: virtude da língua - Foto: Bigstock

Publicidade

Uma das principais diferenças entre os seres humanos e os outros animais é a nossa capacidade de utilizar a linguagem não só para estabelecer uma interlocução com nossos semelhantes, mas também para refletir sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos.

Escrita e fala são modalidades comuns à maioria das línguas e o modo como se organizam define identidades para os grupos que as utilizam. Desde sempre, as sociedades humanas julgam as pessoas pela maneira como falam e escrevem.

Quem quer se comunicar bem deve ter em mente que escreve e fala para um leitor e um ouvinte, isto é, um interlocutor. O assunto e o texto têm que estar adaptados a eles. Se não, o recado deixa de ser dado. A desculpa do “ele não me entendeu” não vale. Entra o “não me fiz entender”.

A história do norte-americano Norbert Wiener (1894-1964) é bastante conhecida. Apesar de ter fundado a cibernética – uma ciência ligada à comunicação –, Wiener foi um péssimo divulgador das próprias ideias. Segundo o estabelecido por ele próprio, cibernética é a ciência da informação e comunicação que estuda o controle e a comunicação em máquinas e animais (especialmente os homens). Ironicamente, apesar de ser um estudioso do assunto, Wiener não era muito bom comunicador. Ele se expressava em mais de dez línguas, mas ninguém entendia direito o que queria dizer em nenhuma delas. Falava muito de si mesmo, mas não sabia ouvir os outros. Assim, sua fama de mau professor ganhou corpo. Os estragos causados pelo seu modo de raciocinar se estendiam a suas publicações. Apesar de conter ideias inovadoras e que se tornaram muito importantes, é comum encontrar em seus artigos uma argumentação sem sequência ou coerência lógica.

Certo dia, um veículo de comunicação noticiou: “Haverá uma audiência sobre abuso infantil na Assembleia Legislativa”. A audiência até houve na Assembleia. Mas a colocação da expressão “na Assembleia Legislativa” junto de “abuso infantil” leva a outra leitura: a audiência tratará da ocorrência de abuso infantil na Assembleia. Certamente, não era isso que se queria dizer. Para solucionar, basta aproximar o adjunto adverbial (na Assembleia Legislativa) do termo a que se refere: Na Assembleia Legislativa, haverá uma audiência sobre abuso infantil. Haverá, na Assembleia Legislativa, uma audiência sobre abuso infantil.

A Voltaire é atribuída a frase: “Uma palavra posta fora do lugar estraga o pensamento mais bonito”. Quem escreve nunca deve esquecê-la. Carlos Drummond de Andrade, poeta e prosador mineiro da geração de 1930, foi um artesão das palavras. Ele, em um de seus poemas, chamou a atenção para a importância de explorar o léxico: “Chega mais perto e contempla as palavras./Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra/e te pergunta, sem interesse pela resposta,/pobre ou terrível/que lhe deres:/Trouxeste a chave?”. Se considerarmos – e devemos – as palavras dos dois autores, entenderemos que é fundamental a consulta a um dicionário. Trata-se de um hábito que devemos desenvolver, para checar a grafia ou o significado de uma palavra e para muitos outros esclarecimentos sobre elas.

Pode parecer óbvio dizer isso, mas os dicionários existem para tirar nossas dúvidas, já que ninguém conhece todas as palavras da língua, e mesmo as pessoas mais experientes têm dúvidas sobre a grafia correta de certas palavras. Ampliar o vocabulário é uma forma de ampliar e aperfeiçoar nosso conhecimento. Some a isso o fato de a Língua Portuguesa ser uma ferramenta fundamental na carreira e no crescimento pessoal.

Neste período eleitoral, muita gente se sente insegura ao conjugar o verbo “aderir”. A maioria “foge” da primeira pessoa do singular do presente do indicativo.  Não há nada demais: eu adiro. A conjugação é semelhante a “preferir” (prefiro) e “gerir” (giro – igual ao verbo girar). A língua é um sistema de possibilidades. Se soou estranho, troque aderir por juntar-se a; gerir por administrar.

Quem não lembra a história do Costa e Silva. O general ordenou que a secretária redigisse um memorando para avisar o horário da reunião de sexta-feira.  A moça, em dúvida, perguntou: “Sexta-feira se escreve com x ou s?”. “Mude para o sábado”, resolveu o chefe. Em momentos de testes e provações, é bom lembrar que Ele respondeu: Está escrito: O homem não vive somente de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Mt 4,4

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto: Bigstock

Sair da versão mobile