Como uma onda – Por João Maria de Lima

Como uma onda - Foto: UMCOMO

A natureza está em constante movimento. As ondas do mar, por exemplo, vão e voltam sem parar. As águas de um rio passam e se renovam. Todos os seres vivos nascem, crescem e morrem. Tudo muda. Nada permanece igual. Nós mesmos estamos sempre mudando.

Para Heráclito, filósofo pré-socrático, o movimento é a característica principal da natureza. A mudança é a sua essência. Os opostos estariam sempre juntos e muitas vezes as coisas seriam transformadas em seu contrário. O novo se transforma em velho. A vida, em morte. O saudável, em doente. O dia, em noite. A beleza, em feiura. O mesmo caminho pode ser subida ou descida, dependendo da direção em que estamos caminhando: “O caminho a subir e a descer é um e o mesmo”.

Baseio-me nesse pensamento filosófico, para fazer alusão a algumas palavras da língua portuguesa e às mudanças de significado que sofreram.  Essa discussão pode ser levada pelo viés do uso da linguagem, considerando texto e discurso, o que farei certamente em outro momento, discutindo ideologia, marcas de visão de mundo, valores e crenças. Afinal, a língua se manifesta como uma atividade social e histórica desenvolvida de forma interativa pelos indivíduos com finalidade cognitiva, para dar a entender ou para construir algum sentido.

Com o passar do tempo, de forma lenta, as palavras vão mudando e ganhando novos significados. São como seres vivos — mudam, envelhecem, transformam-se ou acabam por desaparecer. Algumas acabam no ostracismo e ficam lá adormecidas, mas outras se reinventam e surgem em uma área diferente, e a maioria sobrevive passando de geração a geração.

Veja-se o caso de “formidável”. Como outras tantas palavras, surgiu com um sentido, que foi se alterando com o passar do tempo, conforme as situações de comunicação, os contextos e os próprios falantes foram sofrendo mudanças.  Em “Versos Íntimos, um dos poemas mais celebrados de autoria de Augusto dos Anjos, cujos versos expressam um sentimento de pessimismo e decepção em relação aos relacionamentos interpessoais, “formidável” significa algo “que inspira grande medo, pavor; assustador, aterrador”: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável/Enterro de sua última quimera./Somente a Ingratidão – esta pantera –/Foi tua companheira inseparável!

Escrito em 1912, o soneto foi publicado no mesmo ano no único livro lançado pelo autor, intitulado “Eu. Claramente, “formidável” sofreu uma inversão semântica, tendo agora sentido positivo. Segundo o Houaiss, é o “que ultrapassa as dimensões usuais; colossal, gigantesco; que suscita admiração; extremamente belo ou bom; magnífico; ótimo, excelente, fantástico”. Alguém arrisca dizer hoje “enterro formidável”?

Interessante é o caso da palavra “vírus”. De agente infeccioso a programa que danifica computador, temos duas áreas bastante distintas. Da Biologia à Informática. O próprio verbo “viralizar” (espalhar-se rapidamente na internet) é a prova de que as palavras se reinventam e acompanham o contexto social, a criatividade dos falantes.

O peculato, crime que consiste na subtração ou desvio, por abuso de confiança, de dinheiro público ou de coisa móvel apreciável, para proveito próprio ou alheio, por funcionário público que os administra ou guarda, tem sua origem no Direito Romano. Na época, a subtração de bens pertencentes ao Estado era chamada de “peculatos” ou “depeculatus”. Como ainda não havia a moeda como símbolo de comercialização, o patrimônio estatal era composto, assim, por bois e carneiros (pecus), representando a riqueza pública por excelência; ou seja: peculato passou de roubo de gado a roubo/desvio de dinheiro público.

Autópsia veio do grego “autopsía”: auto (de si mesmo) + opsis (exame). No início, a palavra tinha esse sentido de exame de si mesmo. Depois ganhou popularmente o significado indevido de exame médico de um cadáver e assim ficou em diversos idiomas.  A palavra correta para designar o exame de um cadáver é necropsia, que veio do grego necro (morte) + opsis (exame).

Certamente, outro caso que agradaria ao filósofo Heráclito é o da dupla “aquário/piscina”. Aquário veio do latim “aquarium” (tanque, reservatório de água, bebedouro para o gado), formado de “aqua” (água). Piscina veio do latim “piscina” (viveiro para peixes), formado de “piscis” (peixe) — daí pisciano, quem nasce sob o signo de Peixes. No português, as duas palavras acabaram ficando com os sentidos trocados: hoje aquário é um viveiro de peixes e piscina (que já significou popularmente “reservatório de água para a criação de peixes”) é um reservatório de água. Ouvi, por favor, minhas palavras, e seja este o consolo que me dais.” (Jó, 21,2)

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto: Reprodução / UMCOMO

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