Paulo Freire — 100 anos

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Essa, talvez, seja a frase mais repetida do educador Paulo Freire, que, se estivesse vivo, faria 100 anos neste domingo, 19. Apesar de sua repetição, é sempre possível um olhar diferenciado para essa constatação, sobretudo na perspectiva dos processos educacionais, ainda mais quando se trata do ensino superior. Não é à toa que as universidades brasileiras e de muitas partes do mundo, entre elas a UFRN, constroem espaços de ação e reflexão sobre a obra desse que é considerado um dos mais ilustres brasileiros e atual patrono de nossa educação.

No Centro de Educação (CE/UFRN), desde 2019, foi criado o componente curricular Pedagogias para liberdade, vinculado ao currículo da licenciatura de Pedagogia. “O termo pedagogia está no plural porque a gente não se apoia exclusivamente em Paulo Freire, mas, sem dúvida alguma, ele é um pilar fundamental. E o papel da universidade é esse mesmo, é de avançar, é de aprofundar, de não ficar prisioneira de um pensamento, isso aí seria uma igreja, não seria universidade”, diz o professor e pesquisador Alessandro Augusto de Azevedo, do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo do CE (DPEC/UFRN).

A ideia foi pensada a partir da inquietação de um grupo de professores e professoras do Centro de Educação (CE) em torno da ausência de um componente que condensasse as discussões relativas aos questionamentos abordados pelas chamadas Pedagogias Críticas e Pós-Críticas. Além disso, em consulta aos estudantes de Pedagogia, percebeu-se que sentiam falta de uma concentração maior dessas abordagens e, principalmente, da filosofia paulofreiriana, então diluídas no currículo do curso.

CE/UFRN tem componente vinculado ao currículo da licenciatura de Pedagogia – Foto: Divulgação

Inspirando-se nos princípios da pedagogia proposta por Paulo Freire, antes de começar o componente, os estudantes preenchem um formulário eletrônico, no qual expõem suas expectativas para o curso, o que que querem aprender e estudar e o que que acham que deveria ter no componente que satisfaz ou que mobiliza seu aprendizado. “A gente procura saber o que eles leem, que filmes assistem, quais são os seus hábitos culturais, as referências culturais, para a gente poder utilizar esse contexto dentro do componente curricular”, explica Alessandro.

Assim, o componente é todo pactuado, passo a passo, aula a aula, com os estudantes, incluindo a escolha dos textos e da dinâmica de trabalho. “E isso, às vezes, é difícil porque o estudante fica esperando que já venha tudo pronto e aí fica uma agonia. Mas tem que estar seguindo isso, temos que decidir, porque aqui vai ser todo mundo protagonista do processo. Então, quem quiser ficar calado, fica, não tem problema, mas quem quiser participar, vai participar, a gente vai decidir junto. Claro que eu trago algumas propostas, mas, normalmente, quem já vem para a disciplina leu a ementa na hora da matrícula e sabe que aquelas questões pedagógicas, políticas, sociais e críticas vão estar presentes”, complementa.

Outra ação desenvolvida pelo professor é o EJA em movimento, projeto de autoformação de professores que atuam na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e que busca ser fiel aos princípios freirianos. Todo mês, o grupo se reúne em torno de uma temática definida a partir da necessidade e expectativas de aprendizagem manifestadas pelos professores envolvidos, em consultas prévias e sistemáticas. Essas discussões abordam a construção crítica de propostas pedagógicas para a EJA e a forma como as políticas educacionais para a modalidade são gestadas.

“A gente tenta fazer com que os professores ponham para fora suas práticas, ou seja, suas ações — reflitam sobre suas ações: o que é que deu certo, o que é que não deu, o que que funcionou, o que que não funcionou; o que é que pode melhorar? — para que a gente tenha uma nova ação. E em sala de aula, nas escolas, eles possam desenvolver outra lógica, outra perspectiva. Esse é um pouco dos caminhos que a gente adota, que a gente entende que está dialogando com o pensamento de Paulo Freire”, conclui.

Cátedra Paulo Freire

A UFRN é parte integrante ainda da instalação da primeira Cátedra Paulo Freire do Rio Grande do Norte. Trata-se de uma instituição de natureza acadêmica que busca articular em torno dela a diversidade de estudos e práticas e experiências voltadas para um determinado tema. A proposta é capitaneada pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), em parceria com a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e a Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa). O professor Alessandro Azevedo é um dos articuladores junto à UFRN.

Além de proporcionar a discussão sobre os princípios e fundamentos da pedagogia freireana, bem como congregar em si os diversos grupos de pesquisas e ações de vários segmentos sociais, a Cátedra pretende reunir ainda os movimentos sociais que militam em projetos e ações que têm como fundamento a filosofia de Paulo Freire.

Segundo o professor José Mateus Nascimento, da Diretoria Acadêmica de Ciências (DIAC/IFRN) e do Núcleo de Pesquisas em Educação (Nuped/IFRN), o processo para criação da Cátedra Paulo Freire foi aprovado no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepex/IFRN) e passará pelo Conselho Superior (Consup/IFRN), que também deve se posicionar favorável. A expectativa é que o projeto seja inaugurado no próximo dia 28, às 15h, em evento aberto e com participação de pesquisadores das instituições representadas, bem como de autoridades estaduais.

Homenagens da TVU

No mês em que se comemora o centenário de Paulo Freire, a TVE Bahia preparou uma programação especial inédita e, como parceira, a TV Universitária (TVU/UFRN) também compartilha esta programação. No programa Giro Nordeste desta quinta-feira, 16, às 19h, a entrevistada é a educadora Fátima Freire, filha de Paulo Freire. E na segunda-feira, 20, às 16h, será veiculado o documentário 40 Horas na Memória, que tem como protagonistas 19 ex-alunos do educador em Angicos (RN).

Ainda na segunda, será apresentado o documentário Fonemas da Liberdade, um filme realizado a partir de materiais de arquivo coletados por seis outros cineastas sobre o trabalho de alfabetização promovido por Freire. Ambos os documentários serão reprisados no sábado, 25, às 14h, na TVU. No sábado, 18, a TVU acrescenta ainda a memorável entrevista dada por Paulo Freire no programa Memória Viva.

No início da década de 1960, Paulo Freire dirigiu, no Rio Grande do Norte, um programa-piloto de alfabetização de adultos chamado As 40 Horas. Angicos, uma pequena cidade no coração do estado nordestino, foi a primeira selecionada para desenvolver ali a pedagogia freireana que, com os Círculos de Cultura, o atual patrono da educação brasileira trazia de Recife (PE).

Para resgatar essa experiência, a Assessoria de Comunicação da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) produziu o documentário 40 Horas na Memória: Resgate da Experiência dos Alunos de Paulo Freire em Angicos (RN), tendo como protagonistas 19 ex-alunos, hoje idosos com idades acima de 70 anos. Filmado durante os meses de fevereiro e março de 2013, o documentário é ambientado nas residências de cada um dos participantes.

O filme Fonemas da Liberdade foi integralmente produzido com imagens e entrevistas antigas. O conteúdo foi se estruturando a partir de materiais coletados por seis outros cineastas e em conversas com eles, assim como com vários dos protagonistas: coordenadores e ex-alunos. O resultado é um documentário de 28 minutos que explora a experiência de Angicos e sua importância para o Brasil hoje.

Paulo Freire, 100 anos em 10 parágrafos

Foto: João Pires – Estadão

Paulo Reglus Neves Freire nasceu às 9h do dia 19 de setembro de 1921, uma segunda-feira, na Estrada do Encantamento, 724, bairro Casa Amarela, Recife (PE). Filho do natalense Joaquim Themístocles Freire, militar do exército e depois da Polícia Militar recifense, e de Edeltrudes Neves Freire, Dona Tudinha, Paulo foi o caçula de quatro. Antes tinham nascido Stela, Armando e Temístocles.

Até os 11 anos, Paulo viveu bem, quando precisou se mudar para Jaboatão dos Guararapes, na grande Recife, devido a problemas financeiros ocasionados pela doença do pai, que precisou se aposentar, morrendo poucos anos depois. A partir daí, a vida de sua família foi marcada por muitas dificuldades. No livro Cartas para Cristina reflexões sobre minha vida e minha práxis (Editora UNESP, 2003), organizado por Ana Maria Araújo e Nita Freire, sua última esposa, Freire conta os sofrimentos que enfrentou, incluindo o atravessamento de muita fome.

Começou a ser alfabetizado em casa, tendo como primeira mestra dona Amália Costa Lima, mas é a professora Eunice Vasconcelos que marca esse período. Entre 1937, aos 16 anos, até 1942, aos 21, estudou no Colégio Oswaldo Cruz, em Recife, de propriedade de Aluízio Pessoa de Araújo, pai de Nita Freire. Foi nesse lugar que o jovem Paulo se encontrou como professor e onde conquistou as primeiras oportunidades de lecionar.

Em 1943, entrou na Faculdade de Direito do Recife, formando-se em 1947, mas abandonou a profissão no primeiro caso. Ainda em 1947, é convidado para o Serviço Social da Indústria (SESI), no qual trabalhou por longos anos. No final de 1950, testa seu método de alfabetização de adultos pela primeira vez, mas vai implantá-lo mesmo em 1963, na ação que é comumente chamada de As 40 horas de Angicos, aqui no RN.

Experiência em Angicos – Foto: Instituto Paulo Freire

Essa ação, mobilizada pelo então secretário de Educação do Estado, Calazans Fernandes, no governo Aluízio Alves, contou com a participação dos estudantes da Universidade do Rio Grande do Norte, que, após ser federalizada em 18 de dezembro de 1960, passa a se chamar UFRN. No grupo de coordenadores dos Círculos de Cultura organizados em Angicos, havia estudantes de Direito, Filosofia, Odontologia e Farmácia. O coordenador era o advogado e ex-secretário de Educação do RN, Marcos Guerra, e contava com apoio de Carlos Lyra, Pedro Cavalcanti, Rosali Liberato, Valdenice Lima, Valquíria Félix e outros. Muitos colaboraram como voluntários, entre os quais estava a depois médica Maria Laly Carneiro.

Em 40 dias, a equipe sob os cuidados de Paulo Freire mobilizou a alfabetização de 300 pessoas em Angicos e outras milhares em Mossoró, Caicó e Natal. A proposta repercutiu internacionalmente, atraindo a presença de correspondentes dos principais jornais do mundo. O encerramento em Angicos contou com a participação do presidente da república João Goulart, que organizou com Freire um grande movimento de alfabetização nacional, que não se concretizou.

Com a instalação da Ditadura Militar, Freire se exilou na Bolívia, depois no Chile e, em seguida, na Áustria. Só conseguiu voltar ao Brasil em 1980. Em 1989, assumiu por dois anos a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, no governo de Luiza Erundina, no qual implantou o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), depois transformado em Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Aluno de Angicos escreve uma das palavras geradoras – Foto: IPF

Paulo Freire começou a contribuir com o pensamento acadêmico em 1959, quando publicou sua tese Educação e atualidade brasileira. Seu primeiro livro, Educação como prática da liberdade, foi publicado em 1967, depois publicou Extensão ou educação? — Rio de Janeiro (1971) — e então seu livro gerador: Pedagogia do oprimido (1974). Publica ainda outros quatro trabalhos e entra em um hiato após a publicação de A importância do ato de ler em três artigos que se completam (1982), pois precisava cuidar de sua primeira esposa.

Ele foi casado com a educadora Elza Freire por 42 anos, até a sua morte em 1986. Ela teve cinco filhos: Madalena, Cristina, Fátima, Joaquim e Lutgardes. Depois disso, só volta a publicar em 1991, quando sai A educação na cidade, já casado com a professora Nita Freire, que tinha sido sua orientanda no doutorado. Os dois estavam viúvos quando se casaram em 1988. Em 1992, publica Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido e outros quatro trabalhos, encerrando com Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1996), embora nunca tenha parado de produzir, pensar e escrever, o que se materializa em diversas obras póstumas organizadas por Nita.

Paulo Freire morreu dormindo na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, às 6h30 da manhã do dia 2 de maio de 1997, aos 75 anos, vítima de infarto. Por meio da proposta da deputada federal Luiza Erundina, a Câmara e o Senado aprovaram por unanimidade e a presidente Dilma Rousseff sancionou, no dia 13 de abril de 2012, a Lei 12.612, que institui Paulo Freire patrono da educação brasileira.

Fonte: Agecom/UFRN

Sair da versão mobile