Ciência e videogames: entenda porquê jogos de tiro podem estimular seu aprendizado motor

Muitas pessoas praticam atividades por longos períodos de tempo para desenvolverem habilidades e reflexos, a fim de chegarem a um nível considerado profissional. É necessário ter persistência para realizar a mesma tarefa repetidamente, buscando que a coordenação dos movimentos se torne automática. Esse processo é chamado de aprendizado motor e acontece para qualquer prática que exija movimentos corporais, desde jogar futebol até aprender a tocar algum instrumento musical.

Contudo, será que isso também acontece ao jogar videogame? Um grupo de pesquisadores norte-americanos, composto por membros de diferentes universidades, resolveu investigar se jogadores amadores e profissionais melhoram sua aptidão motora enquanto jogam frequentemente por mais de três meses. A prévia do estudo foi disponibilizada no acervo do bioRxiv e nos permite analisar algumas informações interessantes acerca de como aprendemos a nos movimentar e se jogos podem auxiliar a ciência no estudo do comportamento humano.

Aprendizado motor? Você com certeza já passou por isso!

Imagine que acabamos de ganhar um jogo que queríamos muito. Ao começar a jogá-lo, precisamos processar inúmeras informações novas: o que cada botão de ação faz, quais os menus, como é a física do jogo, o tipo de câmera, a sensibilidade do mouse ou controle. No início, é importante se familiarizar aprendendo as ações e os detalhes. Isso exige esforço e atenção, já que nesse ponto é comum ter que prestar mais atenção para tomar a maioria das decisões.

É só rolar duas vezes e cair direto nessa viga de madeira totalmente suspeita, impossível dar errado!

Depois de algum tempo jogando, não é mais necessário olhar o controle, porque acabamos nos acostumando com os movimentos do personagem e da mira. Porém, alguns deslizes ainda são cometidos, como errar muitos tiros ou pular antes da distância necessária e cair em alguns buracos ou armadilhas. Durante esse período, os movimentos aprendidos são melhorados e produzem um ajuste cada vez mais preciso ao longo do tempo.

Por fim, já zeramos o jogo diversas vezes e agora passamos um bom tempo no modo multiplayer, sendo constantemente desafiados. Nesse estágio,nem nos preocupamos em calcular a distância do pulo ou escolher qual arma vai utilizar, pois muitos movimentos já se tornaram automáticos.

Grafite no mapa de CS:GO em homenagem ao no scope com rifle de longo alcance do jogador profissional conhecido como s1mple.

Sem tanto esforço e com mais precisão e velocidade, conseguimos saber a altura exata para acertar um tiro na cabeça e também como atingir um alvo que se mexe, tudo isso enquanto alteramos nosso padrão de movimento para evitar ser alvejado. Essa evolução é adquirida ao custo de muitas horas de jogo, após termos resiliência para superar diversas frustrações e só então, percebemos que nosso desempenho está muito melhor quando comparado ao começo da jornada. Lembrando que não devemos confundir evolução com perfeição, mesmo profissionais ainda erram. As principais diferenças estão relacionadas à quantidade e os tipos de erro, que geralmente são menos frequentes e ocorrem durante a execução de  jogadas mais complexas.

Afinal, esse tipo de processo nos jogos pode ser considerado aprendizado motor?

Para entender se os jogadores desenvolvem suas habilidades motoras e se jogos podem ser utilizados para estudar comportamentos humanos, cientistas firmaram uma parceria com o estúdio State Space Labs para criar um jogo de tiro em primeira pessoa, o Aim Lab. Esses pesquisadores, coordenados pelo Dr. David Hegger, da Universidade de Delaware (Smaaaaash!), coletaram dados de aproximadamente 100 mil jogadores (amadores e profissionais) ao longo de 100 dias. Foram analisadas as pontuações do modo Grigdshot, que basicamente é um desafio de tiro ao alvo com contagem de tempo regressiva.

O Aim Lab foi desenvolvido com o propósito de treinamento para jogos de tiro em primeira pessoa.

Foi observado apenas um pequeno aumento na relação de acertos por tiros disparados, porém o desempenho dos jogadores profissionais poderia afetar o resultado devido ao treinamento diário em outros jogos. Isso resulta, de modo geral, em performances superiores em comparação às dos amadores.

Pensando nisso, os cientistas também analisaram a quantidade de acertos por segundo e descobriram que a média por jogador aumentou após 100 dias. Como esperado, mais repetições levaram a um melhor desempenho. No entanto, o ganho mais expressivo ocorreu em treinos de aproximadamente uma hora por dia. Após esse tempo, o progresso começou a diminuir, provavelmente por causa da fadiga. Além disso, houve retenção de aprendizado e, quando um jogador aquecia por alguns minutos no dia seguinte, recuperava o nível do dia anterior e começava a melhorar. Um ponto importante a se ressaltar: quando os movimentos se tornaram automáticos (ou próximos disso), a evolução ficou mais lenta e saturada.

Esforço, dedicação e tempo são importantes no processo

Esses dados ajudam a entender, por exemplo, quando começamos a nos aventurar pelo modo multiplayer de algum jogo de tiro, com a esperança de ter um desempenho similar à experiência de enfrentar bots. No fim, acabamos nos decepcionando e ficamos irritados ao presenciar o nível de habilidade de um jogador experiente. Como vimos anteriormente, para automatizar um conjunto de movimentos é necessário que a repetição seja feita até que o movimento se torne automático.

Isso acontece porque são necessários três estágios para o aprendizado motor: cognitivo, associativo e autônomo. Durante o estágio cognitivo, existem muitas informações novas para assimilar, então toda decisão tomada precisa ser consciente; no associativo, a maioria das informações já foi assimilada, muitas ações não requerem tanta atenção para serem realizadas e a precisão e velocidade vão sendo aos poucos ajustadas e melhoradas.

Durante nossa vida, podemos aprender diversas atividades e as memórias geradas nesse processo permitem que consigamos reaprender mais rápido após um tempo sem praticar.

Já no estágio autônomo, a maioria das ações é automatizada, exigindo bem menos esforço e sendo executada mais rápido e com mais precisão. Nesse caso, a facilidade em realizar os movimentos permite que as pessoas realizem outras funções ao mesmo tempo, como analisar o ambiente (cenário) e pensar em diferentes estratégias. Essa é uma das diferenças mais gritantes dos jogadores profissionais em relação aos amadores, a capacidade de automatizar as mecânicas de jogo enquanto planeja jogadas complexas e analisa o ambiente ao seu redor.

Informações como as do estudo em questão intensificam a importância da prática diária de qualquer atividade para ter uma melhoria contínua. O modo como adquirimos e aperfeiçoamos a aptidão motora ao jogar é basicamente o mesmo utilizado para aprender outras atividades que necessitam de movimentos corporais. A utilização de jogos em estudos científicos possibilita não só revelar descobertas interessantes, mas também pode ajudar a criar e melhorar estratégias para jogadores profissionais nos eSports.

Os eSports possuem atualmente um efeito similiar ao futebol, muitos jovens de vários países e com diversas faixas de renda sonham em jogar profissionalmente.

Como funciona o aprendizado das habilidades necessárias para se tornar um ótimo jogador? Quantas horas por dia de prática seriam ideais? É possível criar métodos e regimes de treinamento, baseados em dados científicos, para desenvolver jogadores excepcionais? Como o desempenho dos jogadores melhora com o tempo? Ao que tudo indica, o uso de jogos no estudo do comportamento humano se tornará cada vez mais comum, principalmente pelo poder de alcance que possui em pessoas do mundo inteiro e também por ser relevante cultural e financeiramente.

É provável que, com o tempo, as respostas para essas perguntas sejam reveladas e possam transformar o cenário competitivo de eSports. Os cientistas apenas começaram a utilizar jogos de videogame em seus estudos e contamos com pouca informação sobre o quão viável são essas metodologias. Estamos diante da chamada ciência de fronteira, que a cada nova descoberta, nos revela informações inéditas e abre caminhos para inúmeras possibilidades de utilização, inclusive no aperfeiçoamento de habilidades motoras através de experiências no mundo virtual.

FalleN e coldzera são pro players brasileiros de Counter Strike: Global Offensive e ganharam inúmeros títulos, inclusive alguns prêmios de melhor jogador do mundo.

Ainda é cedo para fazermos afirmações, mas a partir dos estudos, é possível que novas estratégias surjam e poderemos encontrar muitos jogadores acima da média, como o FalleN e o coldzera e o nível dos campeonatos será totalmente diferente do que temos agora. Enquanto isso, seguimos jogando no modo old school: morrendo e morrendo e morrendo novamente.

O Aim Lab está atualmente em fase beta e disponível gratuitamente para PC via Steam. Existe a possibilidade de realizar análises dos treinos buscando melhorar o desempenho em jogos de tiro em primeira pessoa.

*Com informações de Long-term Motor Learning in the Wild with High Volume Video Game Data

Texto de Alexandre Bitencourt

Fonte: GameBlast

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