O resultado das somas

Incentivar a participação feminina e promover o seu empoderamento na matemática, estimulando o interesse e a permanência de mulheres em profissões e pesquisas realizadas nas áreas de Ciências Exatas, Computação e Engenharias. Assim pode ser resumido o principal objetivo do projeto Potimáticas: Meninas potiguares na matemática, coordenado pela professora Elaine Gouvêa Pimentel, do Departamento de Matemática (DMAT) da UFRN, vinculado ao Centro de Ciências Exatas e da Terra (CCET).

A origem do projeto ocorreu em 2017, após uma série de encontros em todo o Brasil denominada Matemática: Substantivo feminino, com o intuito de debater os desafios e as perspectivas sobre a questão de gênero na área. O projeto, que consistia em um ciclo de debates em diversas universidades do país como Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e outras instituições de ensino superior, foi encabeçado pela professora da Universidade de São Paulo (USP), Christina Brech, e contou com o financiamento da International Mathematical Union (IMU). A organização do ciclo na UFRN ficou a cargo da professora Elaine Gouveia Pimentel, que promoveu a mesa-redonda Quanto tempo será que ela aguenta?, realizada em 20 de outubro daquele ano.

Oficina de poliedros de Platão em escola pública de Natal – Foto: Cedida

Foi debatida a percepção que as alunas tinham em relação à graduação, à participação e ao espaço ocupado por elas. Clesia Nunes, uma das palestrantes do Matemática: substantivo feminino, deu informações fundamentais para que se pudesse compreender melhor a situação feminina no curso, partindo do ponto da perspectiva de quem a vivenciava. Uma série de sugestões foi dada após o encontro. Uma delas foi a criação de um círculo de apoio às alunas da graduação em Matemática da UFRN.

Em 2018, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) convocou meninas das Ciências Exatas com o objetivo de patrocinar projetos que visassem a aumentar o interesse delas por essa área do conhecimento. “Essa foi uma chamada inédita, eu nunca tinha visto nada do tipo pela CNPq. Então, fiz o projeto em 2018, enquanto eu estava em um processo sabático, e ele foi aceito. Foi o único projeto do tipo aceito no Rio Grande do Norte”, comenta Elaine.

O projeto, de início, chamava-se apenas Meninas na Matemática. “Assim que o projeto foi aceito, eu comecei a pensar no nome, a pedir sugestões para as próprias meninas do Departamento de Matemática, as alunas, e acabou que escolhemos Potimáticas”. As professoras Débora Borges Ferreira e Julia Victoria Toledo Benavides também contribuíram nessa implantação. Foi ofertado um total de 25 bolsas exclusivamente para mulheres, distribuídas para professoras e alunas de escolas públicas.

Os projetos começaram a ser desenvolvidos em agosto de 2019. Nas escolas, foram desenvolvidas gincanas com viés lúdico e oficinas sobre temas variados, como fractais, topologia e poliedros de Platão. “Era o cartão de visitas do projeto. Então era uma coisa bem dinâmica. Envolvemos diversas turmas, às vezes, a escola inteira. O nosso objetivo era envolver também a comunidade, mas a gente não teve tempo por causa da pandemia”, diz a professora.

Função exponencial

Quando foi feita a primeira atividade nas escolas, um questionário foi aplicado para saber a percepção que os alunos tinham sobre a disciplina. “Quando perguntamos o que eles queriam ser, a maior parte falava caixa de supermercado, bombeiro, eletricista. Se eu perguntasse se queriam fazer alguma graduação na UFRN, respondiam, ‘não, graduação não é uma coisa para mim. Eu preciso começar a trabalhar, ganhar dinheiro’. Então a gente vê que a mentalidade já mudou quando uma aluna fala que quer fazer Matemática fora do Brasil”.

“Nada é mais gratificante do que os depoimentos que a gente ouve depois, quando termina as atividades nas escolas. Elas sempre querem que a gente volte, dizem que adoraram, que não sabiam como a matemática podia ser legal. Vimos também meninas que diziam que tinham vontade de cursar engenharia mas não sabiam se se encaixariam; nunca tinham pensado em cursar Matemática, mas depois dos projetos notavam que podia ser legal e divertido; e também alunos que nos deram relatos de que não tinham nem perspectiva de fazer uma faculdade. Então, eles desenvolveram essa perspectiva de tentar, pelo menos”, diz a bolsista Lara Vidal Souto.

As monitoras de iniciação científica e iniciação científica júnior eram treinadas para auxiliar os colegas a desenvolverem as atividades, como figuras de referência para eles. Assim era ressaltada a importância das mulheres dentro da matemática no espaço escolar. Também era utilizada uma figura da matemática ou profissional que trabalhava na área ou tinha colaborado com ela de alguma forma importante, com papel de destaque e pioneirismo. Também foram desenvolvidas atividades de robótica. O projeto criou ainda, em cada escola, um Clube de Matemática atrelado à Olímpiada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Esses clubes tinham a responsabilidade tanto de difundir as atividades realizadas como organizar a escola em torno dessas ações.

Com o início da pandemia da covid-19, o projeto sofreu drásticas mudanças e novos desafios e dificuldades começaram a ser impostos, em meio a algo que já era um grande desafio, como incentivar a participação feminina em meio tão dominada pela presença masculina. O patrocínio do CNPq acabou em dezembro de 2020. Até o final dele, as atividades eram realizadas de maneira remota nas escolas, com as monitoras ainda tendo um papel de destaque. “Passou a ser um pouco mais complicado, porque nem todas as alunas tinham acesso à internet. Não foi exatamente do jeito que a gente tinha planejado, mas encontramos novas formas de fazer as atividades e isso teve um resultado bastante positivo”, avalia Elaine.

Mais da oficina de poliedros de Platão – Foto: Cedida

Em 2021, o projeto continuou de forma remota e sem patrocínio. Uma das bolsistas de iniciação científica aceitou dar continuidade ao projeto, mesmo que sem receber bolsa. De projeto de extensão, o Potimáticas virou um projeto de iniciação científica. No atual momento, a bolsista Lara Beatriz Vidal Souto passou a desenvolver pesquisas sobre novas técnicas de ensino no formato remoto.

As cinco escolas anteriormente contempladas foram desligadas do projeto. Passaram então a trabalhar apenas com o Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), no campus Parelhas e São Paulo do Potengi, com atuação exclusiva no ensino médio. “Por enquanto realizamos gincanas e atividades de matemática aplicada em cursos como Biologia, Edificações, Computação. Tanto a Lara Beatriz Vidal Souto, que é monitora, quanto eu, que sou coordenadora, estamos presentes fazendo propaganda do curso de Matemática na UFRN, quanto do projeto em si”, diz Elaine Gouvêa Pimentel.

Os professores dos Institutos Federais realizam as atividades juntamente com o Potimáticas nas turmas que estão dando aulas. Tudo acontece de maneira inclusiva, abrangendo todos os gêneros e suas identidades. A quantidade de alunos contemplados nos módulos varia. As atividades desenvolvidas são baseadas nas temáticas propostas pelos professores. Um dos objetivos é tentar quebrar com o modelo da aula expositiva, monótona, que acaba gerando cansaço e desinteresse nos alunos, em uma matéria já não tão querida por eles. Um desses espaços utilizados é a plataforma Desmos.

As redes sociais também têm um forte papel na geração de representatividade e também como recurso didático-pedagógico para o projeto, complementando o conhecimento repassado através das ações e atividades. O Instagram do Potimáticas traz como conteúdo não só a divulgação do projeto, mas também de mulheres que foram e são, enquanto profissionais, figuras de grande relevância na história das ciências exatas. Além de dicas de filmes e livros que retratam suas trajetórias, lutas e conquistas.

Integrantes do projeto Potimáticas – Foto: Cedida

No projeto original, também estava prevista a criação de um círculo de apoio às alunas do curso de Matemática da UFRN. Idealizado pela professora Gabriela Lucheze de Oliveira Lopes, também do DMAT, o Círculo de Hipátia tem como objetivo acompanhar alunas de graduação ingressantes em cursos de Exatas, em especial nos cursos de licenciatura em Matemática, para diminuir os índices de evasão feminina nesses cursos. As alunas começaram a se reunir, de forma optativa, em um círculo para discutir sobre várias dificuldades em relação ao curso.

O Círculo ajudou a inserir as alunas no PET Matemática, que tinham uma prevalência de coordenadores do sexo masculino. Todos os coordenadores eram homens. Elaine perguntava para as meninas o porquê de elas não concorrerem para entrar no projeto. Elas respondiam que tinham medo do fato de a prova ter um grande nível de dificuldade, duvidavam da sua capacidade na qualidade de mulheres, acreditando que apenas homens tinham capacidade intelectual para isso e que aquele espaço não deveria ser ocupado por elas.

“Eu dava aula para uma menina muito inteligente, muito capaz. Mas ela achava que não tinha muitas chances”, destaca Elaine, que começou a encorajar as alunas a fazer o processo seletivo e hoje há uma maior equidade entre homens e mulheres dentro dele, de forma que, entre os participantes, metade são homens e metade, mulheres.

“Quando existe um grupo se unindo e agindo, isso melhora a qualidade de vida da gente sem tamanho. Hoje, a gente pode discutir sobre o quanto a luta por igualdade de gênero passa por isso. Isso mudou a minha vida profissional, ajudou a entender que eu posso fazer tudo que eu quero, e entender que isso está mudando a vida de muita gente, não só de nós enquanto bolsistas do projeto, mas de pessoas que nós já atingimos e vamos atingir com o projeto. O poder de transformação do projeto não pode nem ser medido em palavras. A gente precisa ver porque palavras não são suficientes”, afirma a monitora Rosangela Pereira e Lima.

Os valores de referência

Registramos os depoimentos de participantes do Potimáticas sobre o quanto o projeto impactou a vida delas, enquanto mulheres, estudantes e profissionais, positivamente.

“Pelo meu contexto social, familiar, eu nunca senti a pressão de não ir para Exatas porque não era lugar de meninas. Familiarmente, ninguém nunca teve esse tipo de ideia. Como eu estava sempre cercada por meninos, eu não notava o quão esporádica era essa diferença. Por vezes, eu não entendia. E foi no Potimáticas que eu comecei a enxergar e a entender essa diferenciação. Realmente, ainda existem pessoas que acham que as Ciências Exatas não são para meninas, que a matemática funciona melhor na cabeça de um homem, e que propagam essas ideias para as nossas meninas. Isso fazia com que elas quisessem desistir por causa da visão dos outros. A professora Manuela de Souza (UFBA) tem uma fala que resume bem a essência do Potimáticas: ‘onde a gente não se vê, a gente não se imagina’. Então, eu não me enxergava ali. Portanto, a nossa ideia é dizer ‘venham para a área de Exatas, a gente tem meninas, sim, na matemática, nas engenharias e etc’. Muitas vezes, a gente diz que o lugar da mulher é onde ela quiser, mas apenas fala e não tem muita força. Então, a gente usa as nossas pessoas como figuras de representatividade mesmo. As professoras nos diziam o tempo inteiro ‘vocês podem, vocês conseguem, são capazes’. Então, esse acolhimento que tivemos, através do Círculo e do Potimáticas, fez com que a gente não só não desistisse mas também criássemos asas e ter certeza de que a gente podia não só terminar o curso como ir além dele, ter uma visão mais ampla do que a gente poderia fazer. O primeiro momento marcante foi a primeira atividade que realizamos nas escolas. Foi quando eu tive a certeza de que realmente queria ser professora. Eu estava no quarto semestre, estava na área mas não sabia se era bem o que eu queria, desenvolvendo as atividades antes da pandemia, no contato direto com os alunos, passando o pouco que a gente sabia”, diz Lara.

“Eu enquanto mulher negra, sempre me vi muito longe da realidade de trabalhar com ciência. Quando a gente imagina alguém que trabalhe com ciência, é normal que a gente veja um homem branco desempenhando alguma atividade de jaleco. É muito difícil quando você passa a pensar em toda a sua trajetória acadêmica e escolar. Você começa a perceber que a maioria dos professores foram homens. E aí você começa a pensar ‘poxa, não tem mulheres fazendo isso?’ As mulheres fazem contas apenas para ir ao supermercado, enquanto os engenheiros e arquitetos, astronautas, médicos, são todos homens. Então, os horizontes para as mulheres são muito limitados. No ensino médio, eu já me sentia um pouco incomodada. Quando eu cheguei na graduação, tive o meu primeiro contato com o Círculo de Hipátia. Foi um abraço quentinho. Você perceber que ali tem mulheres, e nós somos mais de 20% das ingressantes, apoiando-se, foi importante. Foi o primeiro contato que eu tive com a ideia de união que eu tive, já com a presença da professora Elaine, apoiando, mesmo de longe. “O trabalho do Potimaticas, para mim, foi um grito de socorro. Foi quando eu tive a oportunidade de gritar para o mundo ‘olha, isso está muito errado. Algum problema está fazendo com que a nossa realidade seja assim’. E pior: cadê as mulheres negras, as mulheres carentes? Porque a maior parte é de mulheres de famílias com um bom poder aquisitivo. Daí vieram os eventos e atividades, as conversas nas escolas da rede básica de ensino público. Ver a realidade daquelas meninas extremamente sem perspectiva, apenas porque o pai obrigou e disse que tinha que estar na escola, e de repente você ver que elas perceberam que podem fazer um curso superior e trabalhar com matemática e área das Exatas foi uma forma de mudar a realidade social de pessoas que parecem comigo. Hoje, eu sou muito feliz por ter realizado essas atividades e por continuar realizando”, comenta Rosangela Pereira.

“Foi muito diferente para mim porque eu sentia que muitos professores da minha escola não se importavam com os alunos. Eles não queriam que os alunos aprendessem, que os alunos se sentissem confortáveis na aula. A qualidade do ensino era bem ruim. Até que um professor me falou: ‘Mikaela, você é muito boa! Você consegue aprender fácil. Não sei porque fica se negando a estudar’. Entrei no projeto com outra amiga e foi ótimo. Eu me sentia muito bem e comecei a acreditar que eu tinha capacidade para qualquer coisa. Eu tinha pessoas ali comigo me ensinando e preocupadas que eu aprendesse, dando realmente atenção. Os projetos eram incríveis e eu me sentia muito confortável em participar. Durante a época do projeto, eu até pensei em fazer licenciatura em Matemática. Era a faculdade para a qual eu estava estudando para passar no Enem. Mas já se passaram dois anos e eu mudei de opinião. O projeto me fez entender muitas coisas e me fez tratar a educação com mais cuidado e atenção, gostar mais de estudar, me sentir mais autoconfiante e tentar ajudar os meus amigos a se sentirem assim também. Isso transformou o meu ensino médio e eu sou muito grata ao projeto. Sem mencionar que a minha situação financeira era muito ruim, e somente aquela bolsa que o projeto me dava para estudar já mudava muitas coisas para mim”, afirma Mikaela, que pensa em cursar Jornalismo.

“Eu entrei nas Potimáticas em abril de 2019. No segundo ano do ensino médio, todo mundo está na jornada de descobrir qual é o caminho que a gente vai trilhar, qual é a faculdade que a gente quer. Eu me interessei muito pelo projeto, porque foi na época em que eu estava entendendo o meu amor pela matemática, e ele me impulsionou de várias formas diferentes sobre viver nas Exatas, trabalhar na área. Não foi só importante academicamente, mas a relação que eu tinha com as outras bolsistas e monitoras, o encorajamento que a gente recebeu durante todo o projeto e a autonomia que a gente teve para criar todos os projetos foi uma experiência que me fez ter a visão que eu tenho hoje. Agora, eu estou me aplicando para faculdades nos Estados Unidos, tenho 12 faculdades na minha lista. Quero fazer Ciências da Computação com especialização em Matemática e Segurança. A professora Elaine tem me ajudado, assim como o professor de matemática do ensino médio. O projeto é a atividade curricular que eu coloquei na minha lista na plataforma de inscrição para as faculdades. Foi o que mais teve carga, me trouxe conhecimentos sobre mim mesma também. Tem sido um processo muito bom, apesar de não ser fácil. É bem assustador querer morar em outro país, mas toda a crença que os meus professores têm em mim me ajuda a seguir em frente, e eu tenho muita confiança de que esse sonho vai se realizar”, diz Giulia.

Todo ano, o 12 de maio é comemorado o Dia das Mulheres na Matemática. Em 2020, o Potimáticas coletou uma série de depoimentos de alunas sobre a comemoração da data. Em 2021, Elaine ficou surpresa. As ex-bolsistas do Potimáticas se uniram a outras meninas do Círculo de Hipátia e realizaram o Segundo Encontro de Mulheres na Matemática da UFRN, montaram todo processo de inscrição e a programação e realizaram a transmissão sozinhas. A ajuda de Elaine foi mínima, apenas para convidar um participante.

“Eu sinto um orgulho enorme de ver o que essas meninas estão se tornando. E já mudou bastante a cara das nossas formandas, que, contra tudo e contra todos, resolvem fazer um curso de Matemática, um curso extremamente difícil”, destaca a professora. Para ela, chegar em um curso no qual ainda não existe uma equidade entre o gênero masculino e feminino é um desafio muito grande para as alunas. Então, essa rede de apoio toda faz com que essas meninas tenham um suporte. “Uma levanta a outra, e eu mais aprendo do que ensino nesses encontros. Essa é a parte mais legal na minha opinião”, conclui Elaine.

“A gente diz: ‘podemos sair do Potimáticas, mas ele nunca vai sair da gente’. É como se, mesmo deixando de ser bolsistas, para cada local que a gente for, vamos levar a essência do Potimáticas, vamos mostrar para nossas alunas que elas podem ser o que quiserem e se querem ir para área de Exatas, têm todo o direito do mundo”, ressalta, feliz, Lara.

Fonte: Agecom/UFRN

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