O Presente

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Remexeu no fundo do bolso da calça velha. E de lá vieram duas notas amassadas e um cigarro roto de marca vagabunda. O que poderia comprar com aquilo? Pensou ao avaliar às opções — enquanto um homem, que passava para cá e para lá, com cara de pouco amigos, também lhe avaliava o tipo desde que chegou ali. Havia saído de casa na ponta dos pés, naquela manhã. Deixou-a ressonando junto à mãe, na velha cama de casal. A semana inteira havia lhe falado sobre o que gostaria de ganhar no dia de seu aniversário. Que dia é hoje? Perguntava-lhe. Dava sempre um suspiro ao saber que aquele dia não era “o seu dia”. E talvez, naquele mesmo momento em que abria o portão que dava à rua, ela estivesse sonhando com o que iria trazer ao retornar.

Rodou a cidade. Avaliou, pechinchou. E não teve nada que lhe agradasse. Que coubesse dentro daquelas duas notas amassadas que estavam agora na palma da mão, ou, que justificasse o uso, para ser empregado daquela maneira. O dia todo, feito de um calor abrasador, e mais o fato de estar desempregado há meses não ajudavam muito. De repente, pareceu uma tolice desperdiçar dinheiro — quando já andava tão curto — com os caprichos de uma criança. Por um acaso ela já não tem o que não teve durante toda uma vida? Por um acaso, não foram muitas às vezes em que o pai nunca se dignou a lhe dar parabéns? De lhe fazerem bolo, acenderem velas, cantarem o nome no dia do aniversário na casa onde morou? O que foram suas festas, em tenra idade, do que jantar, rezar e dormir com os pássaros?

O sol já ia alto quando se sentou no bar e pediu uma cerveja enquanto pensava o que fazer e o que dizer, para não magoar, ou, ao menos, aonde onde deveria ir a fim de encontra algo mais em conta e que ao mesmo tempo fosse mais digno. Pois, se fosse dar-lhe algum presente, que ao menos não fosse “tão mixuruca”. Estava assim, quando, entre um pensamento e outro, encontrou um amigo — alguém que havia trabalhado com ele há muito tempo, em um supermercado — e depois dos berros, dos apertos de mãos e dos abraços, puxou uma cadeira, “garçom”!

Logo passaram os anos em revista. Os acontecimentos hilários. Os chefes carrascos. Os puxa-sacos. Os pequenos delitos praticados a sombra da gerência no antigo depósito. Os amigos que não viam há tempos. O rumo que cada um havia tomado desde que se separaram. Olhou para o relógio, disse que deveria sair, que tinha que comprar um presente para a filha. O amigo insistia para que ficasse, disse que haveria tempo. Assim como ele, também estava desempregado. Também passava por uma barra em casa. O que poderia haver de mal? Afinal, estava com receio da criança ou da mulher? É verdade, pensou. Só mais algumas horas.

Como é comum acontecer, foi justamente no melhor da conversa — naquela hora em que achamos ainda que temos tanto a dizer — que as cervejas acabaram. Colocou a mão no outro bolso da calça velha, e o que encontra senão outros pares de notas amassadas? Aquelas, que tinha pego com um agiota, naquela mesma manhã, a título de pagar também o aluguel atrasado?

A casa estava escura agora. Quanto tempo até que as luzes houvessem sido apagadas? Até que tenha ficado ao pé do portão, lhe esperando, como um cão espera o dono? Agarrado a parede disparou um jato de vômito que atingiu a barra da calça velha e a ponta dos sapatos. E não sem algum esforço, tentou entrar sem que nada derrubasse. Parou em frente à entrada do quarto. O dia fora longo. As duas estavam abraçadas. Exatamente como as deixou ao sair pela manhã. Talvez ainda sonhando com o que lhe traria. Quando estivesse de volta.

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