Esquina do Continente – Entrevista com Théo Alves

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Cada palavra é colocada com desvelo em seu lugar. Como um pedreiro que coloca um tijolo, assenta aqui e ali com cabo da colher, observa, para só então entrar com outros tijolos. Os textos de Theo G. Alves são assim: firmes e alinhados: Impecáveis. Theo (como o chamo) não é um homem velho, mas a precisão com que trabalha a palavra me faz crer que ao menos uma alma velha habite seu corpo – como habita todo intelectual – porém, Theo não é um daqueles intelectuais chatos – sabe contar umas piadas sacanas de vez em quando e falar palavrão. Ainda não sei se bebe.

William Eloi: Você bebe?

Theo Alves: Já bebi o suficiente. Hoje, beber está entre as minhas muitas incompetências.

William Eloi: Ah, se eu ainda bebesse então seríamos dois incompetentes. Lembro de uma vez, aos 15 anos, que acordei com uma dor de cabeça terrível, deitado sobre meu vômito, e minha mãe lá do canto, num tanque, dizendo: Vá beber por causa de mulher, seu safado! Quando seu pai chegar do interior, vou contar tudinho a ele. E eu pensando: Que porra eu fiz?

Theo Alves: Eu fiquei bêbado poucas vezes. Algum criador deve ter resolvido me punir com a capacidade de raramente ficar bêbado enquanto os outros caíam. E a única coisa mais constrangedora do que fazer vergonha bêbado é estar sóbrio enquanto os outros já romperam a linha de lá. Então minha carreira durou pouco. A bebida me agitava, dava uma velocidade estranha e desengonçada aos meus pensamentos, então preferi lidar com a bagunça da sobriedade. Acho que é como dar conta de uma extração de dente sem anestesia. E sem Deus.

William Eloi: Sempre achei que suas crônicas tinham algo de Vicente Serejo, Newton Navarro. Você tem Serejo como uma de suas influências? A geração de Navarro? Seus textos têm qualquer coisa desses intelectuais que de repente dão nome a uma praça. Será que estou conversando com uma futura praça?

Theo Alves: Eu recebo isso como um elogio. Acho Serejo e Navarro cronistas de muita elegância, embora nossos universos literários e de vida sejam bem diferentes. Acho que ambos escrevem bem sobre a alma de uma Natal que eu pouco conheço, apesar de nascido nela. O meu universo mistura uma geografia muito pequena (entre a Rua do Brejo e o Barreiro das Almas, lugares onde cresci em Currais Novos) a um bocado do mundo que conheci pela arte, pelas viagens, pela vida ou pela tv. Eu não sei se um dia vou ser uma praça. Seria bonito isso. Mas não acho que tenha os pré-requisitos para isso. Acho que para ser nome de alguma coisa é preciso ter importância, e a minha…

William Eloi: O interior me dá a impressão que continua produzindo e seguirá produzindo bons nomes. Ao que você acha que se deve isso?

Theo Alves: Ao que me parece, acho que o interior, e aí preciso ressaltar que falo especificamente do interior do Rio Grande do Norte, é cada vez mais o mundo todo. Há nele uma mistura de conhecimentos e rituais ancestrais e algo de novas rotinas iconoclastas. O interior é, ao mesmo tempo, o mundo e a negação do mundo. Essas tensões ajudam muito a inquietar as pessoas ao ponto de elas precisarem se manifestar de várias formas, entre elas a literatura. Espero que haja essa inquietação sempre e os nomes continuem surgindo. Nós que viemos do Seridó, por exemplo, somos um bocado inquietos e vaidosos, o que resulta no interesse em criar coisas boas. Estão aí Christi Rochetô, Iara Carvalho, Wescley Gama, Jeanne Azevedo e tanta gente boa que nem cabe o nome de todo mundo nesta resposta.

William Eloi: Como foi que a literatura, de um modo geral, chegou na sua vida no interior?

Theo Alves: Desde muito pequeno a palavra me atraía. Havia um fascínio que me parecia algo comum, que só vim entender depois de grande. Mas eu gostava das palavras escritas, ditas, improváveis, desconhecidas. Então meu gosto pela palavra é anterior à literatura. Depois, os livros começaram a fazer parte da minha vida. Aliás, “um livro”: Espumas Flutuantes, do Castro Alves, que era o livro que havia em casa. Alguns poucos anos depois, tive a sorte de encontrar bibliotecárias generosas e pacientes que conversavam e me indicavam livros. Na adolescência, encontrei amigos que escolhiam leituras desafiadoras e lindas para mim. Eu tive sorte: fui encontrado por gente muito boa e pela palavra.

William Eloi: E onde estão esses amigos agora? Pergunto isso porque, tirando alguns poucos, os que me iniciaram não estão muito aí pra “essa” de literatura. Me deixando sempre com a impressão de “E aí, José? A festa acabou, a luz apagou e você ainda tá nessa”?

Theo Alves: O passar do tempo oferece muitas coisas boas, mas também algumas um tanto cruéis. Entre essas cruéis está perder pessoas queridas e importantes, como foi o caso de um dos meus amigos mais amados, o artista plástico João Antonio. Outros também vão se afastando porque a correria dos dias é enorme e desumana. A gente vai amainando os contatos, alimentando as saudades e as lembranças. Alguns desses amigos eram leitores fantásticos, embora não tenham se tornado escritores, pelo que eu acho que fizeram muito bem, afinal o melhor lado da literatura é o de quem fica diante das páginas sem precisar produzi-las. Outros ainda estão fazendo literatura e escrevendo coisas maravilhosas, atuando politicamente (no melhor sentido), produzindo culturalmente, sendo relevantes para a criação e para o registro de quem somos.

William Eloi: Você é uma pessoa metódica ou se considera uma pessoa metódica? Pergunto isso porque o que conheço de sua produção passa essa ideia – da mesma forma que sou desorganizado e minhas histórias são desorganizadas. Você acha que a criação reflete seu autor, ou é apenas um disfarce?

Theo Alves: Eu sou um trabalhador da palavra. Aprendi a ser paciente, a organizar os projetos que desejo escrever para saber o que quero, onde quero chegar. A minha bagunça interna já é grande o suficiente, por isso eu uso a literatura para me organizar, mesmo que não seja um escritor metódico. Minha primeira ferramenta de edição, por exemplo, é muito arcaica: eu uso a memória e o esquecimento. Trabalho na memória um texto até lembrar ou esquecê-lo o suficiente para poder parar e escrevê-lo. O resto é trabalho braçal, formão, cinzel, picareta e machado.

William Eloi: Às vezes, quando encontro meu irmão, que é pintor, entendo perfeitamente as latas de tintas abertas, o chão sujo de tinta, seu corpo sujo de tinta, e, principalmente, suas telas inacabadas. Entendo perfeitamente a cadeia de átomos e moléculas, porém, mais ainda uma explosão. Você acha que uma coisa pode viver com a outra no plano criativo? Caos e ordem? (No plano real, tenho certeza de que não! Minha mulher que o diga, toda vez que procuro a cópia das chaves, quando saio com uma camisa amassada, ou quando abandono um livro em um lugar qualquer…).

Theo Alves: Acho que caos e desordem são complementares. Todo caos precede a ordem. E acho o caos uma imensa potência criadora, o momento em que as ideias se encontram em tensão máxima e isso é o primeiro passo de toda criação. Sinto certa inveja de quem pode se sujar de tinta, ter no corpo o próprio trabalho, o método manchando a pele e as roupas. Nossas marcas de escritor são mais assépticas, embora não menos sensíveis.

William Eloi: Você joga bem em várias posições: cronista, poeta, contista, romancista (se os jogadores da seleção brasileira tivessem a mesma habilidade nas quatro linhas…). Mas você se sente mais à vontade, se realiza, como o quê?

Theo Alves: Agradeço a consideração. Eu gosto de escrever o que precisa ser escrito. As coisas se organizam para mim a partir de como eu sinto que preciso dizê-las. Mas vou confessar que gosto do desafio, do experimento. Escrever gêneros diferentes me instiga porque gosto de misturar elementos, aspectos, ritmos e tentar dar a eles algo meu, um jeito de dizer as coisas que seja a minha voz. A inquietação me acalma.

William Eloi: Fale um pouco do seu novo livro, “Inventário de tão pouco”, que saiu pela Penalux neste ano, e o “Peço desculpas por esta crônica (e por outras)”. A propósito: eu adoro seus títulos, você sabe!

Theo Alves: O “Inventário de tão pouco” é um livro de poemas que publiquei este ano pela Penalux, editora paulista, e traz poemas escritos ao longo dos últimos anos. Acho que é das melhores coisas que escrevi no gênero. Um livro com poemas para serem lidos em voz alta, que pensa e sente estes tempos que estamos vivendo, mas sem perder alguma ternura que minha palavra ainda guarda. O “Peço desculpas por esta crônica (e por outras)” é meu segundo livro de crônicas. O primeiro (“A cartomante que adivinha o presente) saiu durante a pandemia e foi premiado pela Lei Aldir Blanc. A aventura desta vez é lançar o primeiro livro pelo Selo Alternativo3zero1, de que faço parte ao lado dos escritores Sílvia B. e Christi Rochetô (sou fã dos dois, faço questão de dizer), e é meu primeiro e-book. O livro será lançado agora, nos dias 10 e 11 de novembro, exclusivamente em formato digital. Como me tornei um desses leitores de Kindle há pouco mais de dois anos, quero ver como meu livro transita nesse universo. As crônicas dele trazem materiais publicados e selecionados de publicações no blog Papo Cultura durante os últimos anos e têm a intenção de pensar e fazer pensar sobre nosso tempo, nosso jeito de viver e comportamento. Espero que ele proponha uma viagem interessante.

Aqui deixo vocês com um poema do Théo:

Inventário de Salvações

todas

as vezes em que me perco

todas

as vezes em que os dias me penduram

pelo pescoço

em coloridos galhos de

cerejeiras

todas

as vezes em que a vida é grande demais

para ser percorrida

por

pés descalços

todas

as vezes em que os relógios já cruzaram

os

braços

e

as aves diurnas

assinaram o livro de ponto

todas

as vezes em que a insônia branqueia

as

noites

de pouca esperança

todas

as vezes

todas

as vezes

em que só nos resta

amor.

Síntese do trabalho: (livros lançados)

Pequeno manual prático de coisas inúteis (Flor do Sal, 2009. Poesia)

A máquina de avessar os dias (Flor do Sal, 2015. Poesia)

Doce azedo amaro (Moinhos, 2018. Poesia)

Por que não enterramos o cão? (Patuá, 2021. Contos)

A cartomante que adivinha o presente (Edição do autor, Prêmio Lei Aldir Blanc, 2021. Crônicas)

Caderno de anotações breves e memórias tardias (Sol Negro, 2021. Poesia)

Barreiro das Almas (Caravana, 2022. Romance)

Inventário de tão pouco (Penalux, 2023. Poesia)

Peço desculpas por esta crônica (e por outras) (Kindle Publishing, 2023. Crônicas)

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