Crisálida

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E pra começar 2024, a coluna abre com “Crisálida”, da amiga Victória Rincon

Crisálida

Por Victória Rincón

Lembro do rosto taciturno do dono da empresa quando me chamou: “Crisálida!”. E agora, simples assim, estou desempregada. Como pode alguém me roubar de mim mesma e sair impune? Se me roubam um colar na rua, mesmo que eu possa recuperá-lo, foi um crime, ninguém questiona. E aí me dizem que o outro me rouba de mim e não há o que ser feito? Para onde vou agora? De que trabalho vou reclamar quando chegar a segunda-feira?

Estou livre e isso é aterrorizante. Como no dia em que meu marido me deixou. E que não nos beijávamos havia anos. Só percebi quando ele fez a mala e, na porta, me deu um último beijo, talvez o melhor beijo, e penso que justamente por eu saber que era mesmo o último. Eu estava inteira lá. Diferente dos outros dias, em que eu dava a ele minha vida apenas na medida em que precisava da dele, uma troca apertada, sem troco. “Me passe a manteiga”, e ele me passava. Sem “obrigada” nem “por favor”. A aridez do sertão que pode ser o convívio continuado. Mas, na reunião de amigas, eu podia revirar os olhos e dizer: “O Olavo? A mesma merda…”. E gargalharíamos juntas.

Sexta-feira e nada. Chope com as meninas podendo apenas dizer que a planta da vizinha do andar de cima está pingando no parapeito do meu terraço, um horror, e que eu pensei em adotar um gato e chamá-lo de Miau, depois achei a ideia tenebrosa e comprei um cacto de três reais no mercado, que é melhor porque não solta pelo. E agora mais essa de não poder reclamar do trabalho. A conversa da demissão dá lá uns sete minutos de papo, sendo muito generosa, e depois morreu o assunto, morreu a Crisálida abarrotada de serviço, sem tempo pra nada, estressada pra caralho…. Era só o que faltava: ter tempo pra ioga que a Alice me chama, com aquela pele de pêssego irritante e uma vivacidade de criança de dois anos que nunca viu o mundo antes. Nem de dinheiro dá pra reclamar, que a demissão sem justa causa deu um pé de meia e eu tenho lá minhas economias.

Agora tô eu aqui, pura potencialidade, puro vir a ser, alucinante vir a ser, virando taças do vinho mais barato que encontrei, que é pra dor de cabeça não me perdoar amanhã e eu cancelar qualquer ideia de olhar a luz do dia. A verdade é que só quero um álibi, uma testemunha da minha própria existência. E se a vida não me dói, como ter certeza que tenho vida? O copo meio cheio é a garantia do movimento, porque eu luto para enchê-lo. Se já está cheio, o que eu faço depois? Se está mesmo cheio, eu morro uma parte. E é desesperadora a sensação de morrer em vida, porque não é angústia, é alívio, e nos acostumamos com a ideia de sofrer. Uma vez a Alice disse: “Cris, a gente confunde muita coisa que não é sofrimento com sofrimento. A gente acha que amor é sofrimento, que valor é sofrimento, que ativismo é sofrimento. Nem sempre. As coisas podem ser mais leves”.

Na juventude, usei minha insatisfação pra tentar mudar o mundo. Meu sofrimento e os dos outros, que passavam também a ser meus, e eu já não sabia mais onde começavam uns e terminava outro. Não deu certo e eu desisti, parei no camarote pra ficar apontando o que está errado. Eu cá nos meus 53 anos vou lá me preocupar com a crise ecológica, com a fome no planeta, com a  última fala de sei lá qual governante dizendo qualquer absurdo? Já lutei muito e foi em uns tempos de esperança pro país. Agora larguei de mão, vi que não tem jeito mesmo. Eu tomo meu vinho barato praguejando as coisas que não têm conserto, e que bom que não têm, porque aí eu posso não fazer nada a respeito e dormir depois. Se for pra ter conserto e exigir mais que aguar uma vez por semana, eu não quero. Se quisesse, eu adotaria o gato.

Tiraram a droga do meu rótulo de diretora executiva duma empresa de renome e agora eu sou o quê? Crisálida, de novo no berço, de novo sem tarja. Onde estive enquanto a diretora executiva vivia? Nunca havia parado para me questionar. Aí eu pensei uma elaboração maluca que já me deixou toda torta por dentro, isso deve ser coisa da Alice mexendo com meu bom-senso, mas vamos lá. Leia essa parte em segredo, que eu não posso dizer isso em mesa de bar e você também por favor não espalhe. Aliás, por favor não, é uma ameaça isso aqui, eu descubro onde você mora, se precisar. Mas, apenas hipoteticamente, usando minha cabeça bagunçada de quem está virando taças de vinho barato, lembre disso, há o vinho barato. Bom, será que o chefe me roubou de mim ou me devolveu a mim mesma? Que agora sinto algum frescor de janela aberta que me faz lembrar que estava tudo sempre aqui. O tempo como folha em branco, que eu rabisquei com toda força até não se ver nenhum espaço. Mas o verso denuncia: é tudo espaço. Que porra de vinho barato, vou anotar o nome para nunca mais comprar.

Uma vez criei um pássaro, eu me distraio com animais porque não pude ter filhos. Não, nada biológico, tira lá essa cara de pena. Era o trabalho, demanda demais. E você deve saber que isso de filho caiu de moda, envelheceu super mal. Aliás, se for pra fazer investimento de risco, eu fico com a bolsa, que não chora de noite nem vomita de porre mal dado na adolescência. Aí o pássaro, né? A mente da pessoa ficando bêbada é essa coisa do ziguezague, a Alice que tem raiva disso, eu acho é graça. Mas aí era o quê mesmo? Ah tá, o pássaro. O pássaro que criei uns dois anos, me entediei da cara do desgraçado um dia e resolvi soltar no parque. Nem voou. Abri a porta da gaiola e ele não sabia o que fazer, ficou parado piando, devia ser medo. Olhei, achei ridículo e levei pra casa de volta, ia fazer o quê? Hoje eu sou a desgraçada da ave piando na frente da porta aberta, oprimida por não saber se consigo aguentar o peso da liberdade. Não sei se consigo sustentar as consequências das minhas escolhas porque tentativas vêm assinadas e assim também vêm os fracassos. Circunstâncias são inominadas, posso culpar qualquer um que não a mim mesma.

E eu estou velha. Se você olhar com atenção as rugas da minha testa, é capaz que veja escrita uma data de validade, uns números que indiquem qualquer lugar do passado. Não sei mais me reinventar, não sei quem me construiu. Contingências. Me deixei construir. E agora aquele homem, 18 anos mais novo que eu, me chama com exclamação no final e diz que não posso mais ser. Ou que posso ser o que eu quiser. Ele abriu a gaiola e disse “vai”, tudo bem que com um jeito meio grosseiro mas eu com o pássaro também fui assim. E eu não sei se vou, se voo. Puta merda, eu sou uma poeta e amanhã vou me odiar. Já me odeio agora porque a tentativa é uma exposição constrangedora.

Eu quero o que é seguro e monocromático, empoeirado até. Desejo vão. Me coloquei repetidas vezes em distrações que me tiraram de mim. Que me fizeram esquecer que estou viva, porque assim também esqueço que vou morrer. Esforço vão. Me roubaram de mim e nada foi feito depois. Pior que isso, me devolveram pra mim desse jeito sem linhas nem proporções. E agora estou toda aqui. Matéria comprimida, igual no último minuto que antecedeu o Big Bang. O desconforto da potência. Crisálida.

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