O filho do homem

Boy looking out the car window

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Estacionou o carro em frente a vila.

Eu não vou demorar muito, entendeu? Você pode ficar aqui se quiser, ou pode ir brincar lá fora. Só não vá muito longe. Enfiou a mão no fundo do bolso da calça. Tome! Compre alguma coisa pra você. Deu uma última olhada pelo retrovisor e saiu.

Neno ficou surpreso quando viu a nota. Em casa, seu pai nunca costumava dar uma daquelas. Crianças geralmente são muito trabalhosas. Mexem em tudo. Brigam, choram, falam pelos cotovelos. Neno não. Era um menino tímido, calado. Por isso Elígio gostava de sair com ele, dizia à esposa. Bastava lhe obedecer. Simples. Então sempre que podia o recompensava.

Neno encostou a cabeça no para-brisa do carro e ficou vendo o pai saltar uma pastada de bosta no caminho do estreito corredor. As crianças que corriam nuas arrastando seus carrinhos sem rodas, suas bonecas sem cabeças, suas bonecas descabeladas. Garotinhas que catavam a cabeça de seus irmãos mais novos. O riso de uma boca sem dentes, um choro. A água que descia da torneira sobre o tanque. O bêbado que chutava um cão. Um cão que espera seu resto de comida, e uma varejeira a lhe espreitar a ferida.

Homem que é homem fica calado, ok? – disse o pai um dia. Passou para o banco do condutor. Vruuuummm!!! Na sua frente havia vários outros carros. Mas ele, com muita habilidade, conseguia sair de todos e acelerar no seu porsche conversível e turbinado. Vruuuummmm!!!

Um garoto que estava ali por perto e chutava uma bola furada contra a parede aproximou-se. Os pés tomados por bicho.

Quer jogar?

Não. Esperando o meu pai.

E se ele demorar? Se você quiser podemos brincar de bafo. Sabe o que é bafo?

Não.

É assim – dizendo isso, colocou três figurinhas no chão e, batendo nelas com a mão em concha, desvirou-as. Olhou para Neno e sorriu – na boca, faltavam-lhe os três dentes da frente.

Tá, vamo lá.

Ganha quem conseguir desvirar as figurinhas.

À medida que os dois foram jogando, Neno observava com fascínio e repugnância o tipo. É que ele lambia a palma da mão suja para a figurinha colar.

Teu pai come a Aninha.

Quê?

Eu sei quem é teu pai. Ele come a Aninha daqui da vila. Dizendo isso, abriu aquele sorriso imundo faltando os três dentes da frente.

Repete isso!

Que que tem? Teu pai é homi. Tu né homi não?

Sou sim!

Então? A Aninha só dá pra quem tem. Teu pai tem.

Dá o quê?

Vamo, Neno, chamou o pai lá do carro, buzinado.

Entrou no carro de cara fechada. E enquanto ajustava o cinto percebia que o pai arrumava a camisa por dentro da calça e se observava pelo retrovisor.

Sabe, eu tava pensando em passar ali no shopping e comprar aquele carrinho que outro dia você havia me pedido.

Qual?

Aquele porsche conversível, disse, socando-o no ombro enquanto segurava o volante com a outra mão.

Tem alguma mancha aqui no meu rosto? Tá percebendo alguma coisa?

Não, pai…

Ah, e outra coisa, meu filho. Não quero você andando com gente daquela vila. Essa gente não tem o que dar.

 

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