The Magic Bus

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Há semanas que não pregava o olho. E não era por causa dos jogos olímpicos do Japão. Mesmo se Ítalo Ferreira estivesse a ponto de receber outra medalha de ouro — o que seria fantástico –, ficaria ainda mais feliz se Morpheus me recebesse de braços abertos. Bem, os motivos para tal insônia são pouco relevantes para o que estou prestes a contar. Por isso deixei-os apenas a cargo de minha psiquiatra, que é paga para escutar motivos. Basta apenas dizer que foram suficientes pra que me prescrevesse uma receita, que, certo dia, mostrei a um amigo.

“Não estou bem”, disse a ele.

“Cara, e quem está bem na porra desse país?”, respondeu-me esse meu amigo, mais experiente, que já havia tomado Deller, Velanfaxina, Clonazepam, Escitalopram, Caralhodeazopam, etc, etc, etc, etc., e que quando viu a tal receita ficou espantado.

“Bicho, 100mg disso aqui? Pirou?”

“Não fui eu. Foi minha médica. Quer dizer, você sabe o que eu quis dizer.”

“Peraí”, dizendo isso foi até seu quarto e voltou com uma cartela. “Ó, toma só uma banda disso aqui. Uma banda. 20mg.”
“Ok!”

A noite veio e, com ela, enfim, o sono. Acordei no outro dia. Lindo, leve e solto.

II

Há tempos que não ia no Vinícius, um jovem proprietário de um sebo. Então decidi passar por lá, pra saber das “novidades”. Eu gosto do Vinícius. Sempre de pálpebras caídas, olhos vermelhos — como quem tivesse passado a noite acordado — e, mesmo assim, sempre com um sorriso no rosto. Eu não tinha aquele sorriso do Vinícius. Foi o que achei estranho, quando o terceiro vendedor de baganas se apresentou, dizendo seu nome: Pra quem não me conhece, meu nome é Fulano. E ainda: um dia nublado realmente é ótimo para dormir, mas para quem levou um tiro e tem um pedaço de bala na cabeça, o frio incomoda, e eu entendo quem tá com sono, mas Jesus é maior! Meus olhos estavam semicerrados, piscando, na direção do vendedor que tinha uma bala enterrada na cabeça — e devo os ter fechados por duas, três vezes. Senti que aquilo foi um cruzado em minha direção. Imagine se ele estivesse vendo meus dentes arreganhados, por baixo da máscara. O ônibus seguia a viagem e eu, meus devaneios. Meu chefe me ligava agora, perguntando: “Como anda sua saúde? Fiquei sabendo! Olha, o que você precisar de mim, qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, pode contar comigo! Não deixe de me ligar.”

“Seu filho da puta, eu precisei de você! Eu precisei de você há duas semanas! Houve um erro no meu salário! Como estou? Como você acha que estou? Estou sentando na recepção de uma clínica psiquiátrica, com pessoas babando ao meu redor. Espero que esteja satisfeito, seu merdinha! Esboço outro sorriso por baixo da máscara. Tudo o que eu gostaria que houvesse acontecido. Então o ônibus desvia da rota. Desvia da rota? Caralho, ônibus errado! Peço parada, ando uns duzentos e cinquenta metros. As luzes da cidade encandeiam mais do que o normal. Percebo detalhes em coisas que geralmente não me chamariam atenção. Pessoas na multidão me percebem, me observam. Elas sabem que conheço todos os seus segredos, íntimos, sujos, e também parecem conhecer os meus. Me olham. Como assim o fosse. E cochicham às minhas costas quando passam por mim. “Putaquepariu, o que danado eu tomei?”

“Esse ônibus vai para Plateía Politón?

“O quê?”, reponde o motorista, ao mesmo tempo que está escutando um forró.

“Plateía Politón!”

“ Plateía Politón? Plateía Politón? Vai, vai sim”, respondeu o motorista.

Será que estou falando grego?, penso. Devo estar com a língua enrolando. Ótimo! Mais essa! Tenho que esperar até o efeito passar. Um quarto vendedor de baganas se apresenta: Para quem não me conhece… Ótimo! Tudo o que eu gostaria que acontecesse de novo. Então o ônibus desvia da rota. Desvia da rota? Caralho, ônibus errado!

“Motorista, desculpe-me. Tem realmente certeza de que esse ônibus vai para Plateía Politón?”

“Tenho, irmão. É porque essa é a linha B.”

“Ah, ótimo…”

Encosto minha língua no céu da boca para testar minha sensibilidade. Agora, tudo ok. Estou no comando. O ônibus havia desviado por dentro das vielas estreitas de Mãe Luiza. Entre subidas e descidas, entre fluxo e contrafluxo. Casas tão juntas umas às outras. Pessoas. Não sei dizer o que houve, mas, de repente, uma estranha sensação de paz me invadiu. Como se eu, aquele ônibus, seus passageiros, todos fôssemos Mãe Luíza. Então surge o mar. O ônibus, nos levando pela margem, parecia navegar junto à correnteza. Não sei por quanto tempo aquilo durou, dez, vinte anos. Não sei se mesmo Argos me reconheceria quando eu estivesse de volta. Se abanaria o rabo, se me lamberia a cara. O que soube depois foi que o motorista havia trocado de linha naquele mesmo dia. Estávamos todos perdidos, no mesmo barco, cruzando a maré alta.“Em frente, Netinho”, disse uma das moradoras da comunidade que havia embarcado no ônibus e que conhecia o motorista pelo nome. O motorista explicou a ela que estava perdido e que buscava uma saída. Eu, lá do banco de trás, não tinha mais certeza se queria sair de onde me encontrava.Contei a Vinícius da odisseia, assim que cheguei ao sebo. Vinícius me recebeu com suas pálpebras caídas e com seus olhos vermelhos.Ele apenas sorriu, me dizendo: Bicho, que viagem!

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