O amor que não ousa dizer seu nome

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Cara, deixa de besteira. Todo homem tem segredo. A número dois”, vivia falando o Sérgio lá no trabalho. No caso do Sérgio, havia a número dois, a três, a quatro… O que não era bem um segredo pra ninguém. Nem pra esposa do Sérgio. “O que você precisa é viver”, sentenciava ao amigo. “Tu é gay?” O pai de Luís Antônio, assim como Sérgio, também tinha segredos. Muitos. A finada sua esposa que o dissesse. Primeiro ele negava. Negava até o fim. Em último caso, falava: “Sim. Fiz, me arrependo, pode me xingar. Sou mesmo um canalha! Um mentiroso! Você tem toda razão de estar com raiva! Mas amo você! E juro por tudo que é mais sagrado que não farei de novo!” Esperava a poeira baixar. Então negava. Negava até o fim.

As coisas não iam bem para Luís Antônio naquele mês. Antes mesmo da crise econômica, ele e sua esposa já viviam com a corda no pescoço. Muitas contas pra pagar. Estresse. Algumas brigas. O filho que não tinha atenção suficiente pra brincar. A mulher que não tinha uma palavra de carinho. E Luís Antônio? O que faltava a Luís Antônio? Saiu naquele dia sem dizer nada a ninguém. Deixou-se levar a cargo do destino, para desopilar. No ônibus, contemplava da janela a paisagem em movimento, que também não dizia nada. Talvez Sérgio estivesse mesmo certo. E o que faltava em sua vida era viver. Depois de alguns quilômetros rodando, pediu parada.

Luís Antônio foi dar no centro da cidade, num local de aparência velha. Cheio de quadros, peças antigas, algumas esculturas e livros. O dono do lugar, muito solícito, ofereceu uma xícara de café. De forma gentil, Luís Antônio recusou. “Fique à vontade”, falou o dono do estabelecimento, que parecia ser uma espécie de confraria frequentada por tipos singulares. Luís Antônio foi até as estantes que ficavam mais ao fundo, por onde correu seus olhos sobre alguns títulos e sua mão na superfície suja. Foi então que aconteceu. Luís Antônio o encontrou. Fazia muito tempo que não se viam. Talvez, desde a época em que era adolescente. Nem o tempo nem a distância haviam quebrado o encanto. Ficaram os dois mudos, de frente um pro outro. Num ato de ousadia, mesmo tremendo, Luís Antônio estendeu a mão e o tocou. Puxou-o para junto do peito e o abraçou de forma afetuosa, não se importando com os outros que estavam ali os observando, que, para Luís Antônio, agora de forma mais clara, entendiam perfeitamente o prazer no encontro entre dois amigos.

Luís Antônio passou ainda um tempo absorto nele, olhando para sua cara um pouco surrada — das inevitáveis marcas do tempo –, porém, amando-o do mesmo jeito. Por onde esteve por todos esses anos em que não se viram? Deu o silêncio como resposta. Seu amigo não era de dizer muito. Só quando estavam a sós. Luís Antônio sabia. Mesmo depois de anos, o que seu amigo disse nos momentos em que estiveram a sós ainda estava marcado em seu coração. Para a surpresa de Luís Antônio, seu amigo revelou o mesmo. Uma tatuagem, desenhada em linhas tortas — Natal, 15 de maio de 1991 — Luís Antônio. Depois de horas, Luís Antônio saiu com uma sacola. E a exemplo de qualquer homem, agora também tinha “um segredo”.

Os dias se seguiram. As contas aumentavam. Também as exigências de carinho. Luís Antônio só queria saber de pegar um ônibus que o levasse até a confraria. Estava cada vez mais ausente de suas obrigações, até mesmo no trabalho, o que acabou lhe custando o emprego. Dane-se, pensava Luís Antônio. Agora eu tenho uma vida! Porém, não largamos o mundo assim tão fácil, sem dor ou trauma. Por mais que possamos imaginar que podemos voar, a gravidade se faz entender, mostra-nos o quanto pesa. No caso de Luís Antônio, foi um pequeno e insuspeito pedaço de papel, tão pesado quanto chumbo, dizendo por onde ele andou com seu amigo. Tão feliz estava, a ponto do releixo, da idiotia, comum quando se está amando, que acabou por deixar o papel em sua estante, ao alcance de uma criança — e seu filho logo pegou e entregou para a mãe: “Mãe, o que é isso?”

A esposa de Luís Antônio o aguardou com o papel na mão. Esperou ele chegar da “confraria”. Quando o marido entrou em casa, ela perguntou, olhando em seus olhos: “O que é isso? Você pode explicar?” Luís Antônio, lívido, pensou no que um homem faria em seu lugar. Daí, veio a lembrança do pai. Primeiro negando. Negando até o fim. Em último caso, falando: “Sim. Fiz, me arrependo, pode me xingar. Sou mesmo um canalha! Um mentiroso! Você tem toda razão de estar com raiva! Mas amo você! E juro por tudo que é mais sagrado que não farei de novo!” Esperando a poeira baixar. Então negando. Negando até o fim.

“Comprando livros de novo! Já falei milhares de vezes pra você. Eu sei que é algo que ama, mas a gente tem que ter consciência… Você agora desempregado… Faltando as coisas aqui dentro de casa… Inclusive, pro seu filho…”, disse ela, com exaspero e consternação, e devolveu-lhe a notinha de compra.

“Ok, meu amor. Prometo que não faço mais isso. Foi só dessa vez.”

 

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