Esquina do Continente – Entrevista com Christi Rochetô

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Christi Rochetô nasceu em maio de 1986, no município de Jardim do Seridó, sertão norte-rio-grandense. Pai de Flor e Lucas, é escritor, poeta e artista plástico, mas sobrevive principalmente da produção e edição de vídeos educacionais. Publicou “Sombra Fria” (contos, 2020), “Suspiro Desvelado” (poesia, 2021), “A Máquina dos Pássaros” (conto em formato de zine, 2021), “Rivustrada” (poesia, 2023) e “Haikais Iniciais” (e-book independente, 2023), além de ter participado de diversas antologias. Como pintor, expôs, entre os anos de 2012 e 2015, no Colóquio Barroco, evento do CCHLA/UFRN, na Pinacoteca do Estado do RN em 2017 e ainda em diversas mostras organizadas periodicamente por alunos do DEART da UFRN.

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Todo artista tem a inquietação na alma, a impressão de não pertencimento. “Não gosto daqui”, diz Christi Rochetô de repente, com a mansidão que lhe é de costume e o trato refinado (penso que se Rochetô fosse um vagabundo, o que não é o caso, conservaria ainda o charme que seu nome e suas atitudes evocam). Assim, nesta entrevista Rochetô nos fala, com saudades, do interior e do mundo que reinventa em sua arte.

William Eloi: Christi Rochetô, de onde vem esse nome? Qual é a história por trás dele?

Christi Rochetô: Nasci em dia de Corpus Christi, por isso o primeiro nome. Não sei se há algo religioso por trás disso, promessa ou coisa do tipo, só sei que foi escolha de minha mãe. Já “Rocheteau” (que prefiro assinar “Rochetô”, pelo simples fato de que assim me parece mais nordestino que francês), vem do camisa 10 do PSG nos anos 70 e 80, Dominique Rocheteau, de quem meu pai era fã. Dizem que meu pai sonhava me ver jogador de futebol (o que ele também queria ser, mas não era bom o suficiente. Há quem diga que ele só jogava nos campeonatos do interior porque era dono da bola). Por isso me deu esse nome, para dar sorte na carreira. Não jogo nada também! Me deu mais sorte o nome Christi, que me salvou de eu me chamar Dominique numa cidade de interior. Já pensou? Tudo que tenho do meu pai, fora a aparência e o nome que ele escolheu, são estas memórias emprestadas: “dizem”, “ouvi dizer”, “me contaram”. Meu pai morreu de câncer aos 26 anos, antes que eu pudesse conhecê-lo.

William Eloi: A paisagem do interior sempre está presente no seu trabalho, se não de uma forma clara, mas de um jeito sutil, ainda assim, diferente da maneira que comumente o homem do campo é retratado na literatura. A lembrança mais antiga que guardo na memória do interior é quando ia à casa de meus tios e andava com meus primos. Um lugar onde se podia aventurar-se: caçar, pescar, ir a uma vaqueja pra ver um boi sendo derrubado (passatempo que odeio, aliás), tomar banho de açude, colher frutas num roçado, e tudo o que você traz se referindo ao interior é algo calmo, um contraste à vida na cidade, onde me criei e moro.

Christi Rochetô: Vivi tudo isso também. Cacei, roubei fruta, atanazei velhos, tomei banhos de açude. Mas, convenhamos que isso é um lugar-comum na dita literatura regional. Menino do Engenho já foi escrito. Me provoca mais a escrever o medo da vizinha que, já perto de morrer, via homens voando sobre e copa das árvores ao anoitecer; a negrura do céu de uma cidadezinha com poucas luzes; o silêncio cálido das tardes infinitas; o movimento da natureza em um lugar que não tem as estações bem definidas. Tenho muita saudade, em particular, das chuvas estrondosas do sertão, era nos banhos de chuva que a gente experimentava a mais profunda sensação de liberdade, quando o mundo parava e os adultos se misturavam com a gente para brincar. Fora isso, também fui uma criança muito doente e passava boa parte do tempo em casa com crises de bronquite asmática, ansiando poder sair, poder viver. Acho que minha paisagem é muito essa ânsia, essa espera. Quando se mistura isso à memória, que também tem o costume de crescer muito o tamanho das coisas, tudo entra muito no campo da idealização. Memória, quanto mais distante, mas tem parte com o sonho.

William Eloi: Você é artista plástico, poeta, romancista, contista. Parece que de repente uma única forma de expressão se tornou pouco. Você, enquanto artista, se sente mais à vontade fazendo o quê?

Christi Rochetô: É interessante essa pergunta! Tenho uma amiga que também é escritora e artista. Adriana Duarte (Dridu). E ela não acredita de jeito nenhum em mim quando digo que é a mesma coisa pintar e escrever. Tanto é que há anos não pinto. Tudo que faço é a partir do meu olhar e sempre de fora para dentro, meu interior não se expressa no meu trabalho se não subconscientemente. A inspiração da pintura é, para mim, exatamente a mesma que me faz escrever. É sempre algo que eu vejo, que se cruza com algo dentro de mim e que eu expresso por meio de cores, traços, linhas, pontos. Minhas cores são queimadas, terrosas, diluídas em vermelho e amarelo e salpicadas de azul e verde. Verde, aliás, minha cor favorita. Quando escrevo “Algaroba inflamada de tarde, sou esta sombra nenhuma que se mistura em tua sombra…”, isto é um quadro, não? Para mim, só muda o suporte e as ferramentas. Porém, essa inquietação é comum à minha geração, acredito que na maioria pelo acesso a meios de explorar a criatividade, também ao acesso maior a referências por meio da internet. Se a geração anterior era inquieta e a nossa segue neste prumo, imagina como será a próxima!

William Eloi: Eu bem que tentei. Comecei lá atrás como desenhista. Ainda criança até a idade de meus 18, 19 anos, então desisti. Participei de uma banda de rock, que durou apenas quatro anos! Me meti com poesia. Mostrei todo orgulhoso ao Márcio Simões, poeta e editor da Sol Negro, que sem pestanejar, me disse: “Will, você como poeta é um ótimo escritor”. Daí desisti da poesia. Então parti para a prosa (espero que dê certo!)

Christi Rochetô: Também tive minha fase de músico quando mais jovem. Toquei de rock japonês a blues, tive uma banda autoral com Teagacê, que agora desponta no rap nacional. Mas eu era mais prepotente do que bom no que fazia. Estava fadado a ser mais uma de minhas tantas desistências. Desenhar, no entanto, sempre foi de mim. Desde muito cedo via tio Naldinho e meu primo Harley desenhando heróis como Conan e Rambo e tentava imitá-los, mas tinha preferência por King Kong e dinossauros. Cresci sendo uma promessa nas artes (aqui eu rio muito!). Depois de adulto, já expondo em galerias, vendendo trabalhos até para fora do país, me perdi disso, perdi aquela coisa que dava sentido e prazer, aí não pintei mais. Desenhar, desenho ainda, todos os dias regiamente. Mas sou incapaz de mostrar a quem quer que seja. Porém, não penso nisso com pesar, escrever para mim, como já disse, é a mesma coisa e o que eu escrevo está aí para quem quiser ler.

William Eloi: E essa inserção no haikai? Como foi? Teve alguma influência do Eduardo Ezus? Você tá com livro novo, né? Conta aí pra gente.

Christi Rochetô: Teve total influência e ajuda de Ezus, sim. Muito do material que estudei, ou recebi dele ou conheci por meio dele. Ezus é um dos poetas que mais admiro e tenho a sorte de tê-lo como amigo. Posso dizer que aprendi a gostar de haikais com o Terça Diminuta, que troquei com ele por uma cópia do Sombra Fria. Ser amigo de uma referência sua, já pensou? Tenho a sorte de estar entre meus contemporâneos, acredito muito que no futuro esta geração será estudada, referenciada como foi com a dos idos 1970. Haikais Iniciais é fruto de um pouco mais de dois anos de estudo, leitura e tentativas de produção. Meus primeiros erros estão no livro Rivustrada, no tomo ‘Paisagens’. Estes agora são ou meus acertos ou eu pensando que acertei. É minha primeira publicação feita exclusivamente para o formato eBook, em partes porque não queria nenhuma intervenção no trabalho, e para isso ele precisaria ser totalmente independente; segundo, pela vontade de explorar o alcance dessa ferramenta entre leitores mais novos (estes são os que mais se interessam por minha poesia); terceiro, que é muito desgastante para mim o processo de editoração de um livro físico. Minha experiência com Suspiro Desvelado e a 1ª edição de Rivustrada quase me fizeram desistir de publicar de novo. Não fosse a fé de Heldene Leicam, que editou a segunda edição e me motivou a seguir em frente, eu teria dado cabo a essa coisa de escritor. Recebi algumas críticas por fazer um livro só no meio digital, publicar pelo Kindle Direct Publishing. Seria um suicídio editorial, um desperdício de meu trabalho. Acho tudo isso um exagero. O futuro está aí e já tem muita gente lendo “Haikais Iniciais”.

William Eloi: “A Máquina dos Pássaros”, conto seu que saiu pelo Seloko, do Eduardo Ezus, foi uma das coisas mais belas que já li em relação a contos nos últimos anos. Em seus textos há algo de Gabriel Garcia – sem dúvida uma influência perceptível que outro dia você mesmo já havia me dito – mas vejo também algo de Eduardo Galeano.

Christi Rochetô: Sim. Me sinto tão íntimo da obra de Gabriel García Márquez que o trato por Gabo, apenas. Mas não só dele. Sabe o que eu estava lendo quando escrevi A Máquina dos Pássaros? Lygia Fagundes Telles. Eu estava estudando a estrutura narrativa dos contos de amor de Lígia, tentando aprender a fluidez com que ela conta uma história. Ouvia muito nesse tempo uma banda argentina chamada La Máquina de Hacer Pájaros, daí o nome. Foi apenas um exercício. Meus melhores trabalhos são esses mais despreocupados (todo trabalho que já publiquei é despretensioso. Os pretensiosos, sequer consegui terminar!). Hoje leio mais Galeano do que na época. Provavelmente minha próxima publicação terá muito dele. Penso em um dia publicar algo como O Livro dos Abraços. Não tenho medo de apontar minhas referências, enquanto há quem as esconda a sete chaves. Talvez essa sensação que você tenha seja do fato de que não só bebo muito de toda literatura latino-americana, como também minha maior pretensão como escritor seja me tornar um escritor latino-americano.

William Eloi: Gabriel Garcia, confesso, vim conhecer por sua causa – e o admiro pra caramba –, já Lygia Fagundes conheci por aí, e, na minha opinião, é uma das grandes contistas, mundialmente falando!

Christi Rochetô: Concordo com você. A narradora de Lygia conta uma história como quem está sentada ao nosso lado tomando um café. Queria muito ter isso em minha prosa. Já meu contato com Gabriel García Márquez foi catártico. Entramos de novo naquele papo lá de cima de paisagem, de ambiente. Quando lia algo sobre Nordeste, comumente era um pastiche de Nordeste, repetindo as receitas de Ariano Suassuna, ou algo de um tempo que não vivi, que não reconhecia, a não ser nas lembranças que meus avós tinham de seus próprios avós. Quando lia algo da “grande literatura nacional”, era como ler fantasia: um mundo novo dessas grandes capitais ao qual eu era completamente alheio. Ler Cem Anos de Solidão, no entanto, era ouvir vovó Nazinha rezando o terço para apascentar os mortos da casa, era recordar as borboletas de abril enchendo a praça onde eu brincava depois que saía da Escola Rural. Mais que me identificar com aquele mundo, eu identificava meu mundo naquele. E depois eu pude provar como isso fazia sentido: herdamos dos bascos e dos galegos não só a aparência e algumas expressões como nosso “vixe”, herdamos também o modo de contar histórias salpicadas de superstições e coisas mágicas. Isso sobreviveu na América Latina de Juan Rulfo, Gabriel García Márquez, Isabel Allende, Julio Cortázar e culminou no realismo mágico. Mas não foi maior que um lampejo em Machado de Assis ou qualquer outro clássico autor brasileiro, porque a literatura dos grandes centros só sabia imitar a Europa, deixando nossa literatura mais telúrica (para usar a mesma expressão que Guimarães Rosa usou), o rótulo de regional. Por isso não escrevo sem um livro de Gabo ao meu lado. Isso foi muito libertador e é parte essencial da minha identidade enquanto artista.

William Eloi: O objeto, a paisagem, parece ter tanta relevância em sua prosa quanto a pessoa. É algo que você trouxe das artes plásticas? Da poesia?

Christi Rochetô: Sim. A pintura me tornou artista. Como disse antes, não vejo distinção entre os dois tipos de trabalho. Minha prosa, minha poesia, vem do olhar ou tange o olhar do leitor. Mesmo os outros sentidos, eu tento expressar no texto como eu expressaria na pintura. Uma vez passei muitos meses tentando pintar o som do sino. Descobri que era um som amarelo, mas que deixava uma mancha azul no silêncio diáfano depois que passava, como olhar para uma lâmpada incandescente por um segundo, depois olhar para uma parede branca. Escrevendo ou pintando, faço muito esse uso da sinestesia.

William Eloi: Henry Miller tinha muito disso, talvez porque em seu período em Paris, além dos prostíbulos e das putas com quem se cercava, andava muito com pintores e poetas. Inclusive pintou alguns quadros na velhice.

Christi Rochetô: Espero que na velhice eu já tenha feito as pazes com a tela e as tintas. Não sei se como Henry Miller, mas se eu achar a liberdade que Picasso encontrou de pintar como uma criança (não há ironia ou demérito no que digo aqui), estarei feliz. Se não conseguir, sempre terei a escrita.

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