Narrativa do lugar nenhum

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Lembro-me de quando o futuro era – tal como um oásis- um lugar muito, muito distante. Cheio de luzes de neon e carros voadores; colantes de vinil e armas lasers. O encanto que essas imagens nos causavam – a molecada que tinha mais ou menos a minha idade e a mim – uma reprise de Star Wars, ou um cult cyberpunk” repetidos à exaustão na sessão da tarde. E mesmo a aridez dos seus cenários pós-apocalípticos, influenciados pela paranoia da guerra fria de uma hecatombe nuclear próxima, não nos assustava. Dado o fascínio pelo hibridismo homem-máquina: de ser, de repente, algo que não éramos.

Apesar da revolução industrial, em que populações campesinas levadas pela consequência produção-consumo das máquinas a vapor migravam para os grandes centros urbanos, gerando um aglomerado habitacional de caos, sujeira e violência, o (des) controle, a manipulação e o impacto dramático das tecnologias na sociedade humana não era em si um fenômeno novo.

Tão importante como a invenção da roda (ou da máquina de tear a vapor) o simples fato de no período paleolítico começarmos a usar o fogo para assarmos o nosso alimento, liberava o sistema digestório de um processo excessivamente lento, queimando menos oxigênio, demandando menos energia, e dando assim a máquina suave tempo para “pensar”.

A prosperidade econômica e principalmente os avanços nas tecnologias marítimas -O contato dos povos através das zonas portuárias- fizeram com que já em seus primeiros anos a filosofia fizesse bom proveito desse tempo e a humanidade passasse a olhar mais para si e o mundo a sua volta com Sócrates, Platão. Do mesmo modo as máquinas a vapor a produção em série, quase seis mil anos depois, redesenhava o modelo do que era “ser humano” na virada do século XIX para o século XX e ali se via nascer as duas maiores correntes econômicas-filosóficas do mundo moderno.

Com a recessão na economia europeia, mais especificamente no reino unido em meados dos anos setenta do século XX, “a arte” se juntaria as manifestações que vinha das ruas, como forma de expressão e manifesto, e assim como se viu no final do século XIX e início do século XX, milhões de trabalhadores desempregados lutavam agora também por uma forma de vida mais digna ao mesmo tempo em que eram contidos por uma repressão violenta.

Não há futuro!”, bradava um jovenzinho da classe trabalhadora britânica, de cabelos vermelhos espetados e dentes podres, respondendo aos ecos que se ouviam do outro lado do atlântico.

Se não havia futuro para aquela juventude punk e para aqueles milhões de trabalhadores desempregados seguindo o antigo modelo em que a sociedade de consumo estabelecia sua hegemonia, então seria precisa explodir com tudo aquilo que estivera errado até então. Seja pelo terrorismo, pelo niilismo ou pela anarquia, mas era preciso se reinventar. Adotar todo o lixo que eles desprezavam. Mas aquilo era letal demais.

E a sociedade conservadora, a despeito dos primeiros anos selvagens das manifestações juvenis, como rock n´roll, com Elvis, Litle Richards, Chuck Berry e Jerry Lee Lewis, depois do espanto inicial, assimilou-os, deu-lhes um rótulo e colocou-os a venda. Para serem consumidos.

Paralelo às insurgências das ruas (Nova Iorque, Londres) e ao mesmo tempo conectado a elas, David Bowie iniciava a sua trilogia Berlim– que viria influenciar a moda e os sons dos grupos de Sinthypop e New Romantics no início dos nos anos oitenta do século XX- imerso nas novas possibilidades sonoras dos sintetizadores, influenciados por grupos de Krautrock como os alemães do “Kraftwerk”, Bowie abandonava o glamour decadente e adotava agora uma imagem mais clean. Robótica. E logo no primeiro disco dessa “trilogia” chamado apenas Low os críticos, que ficaram divididos à época, apontavam justamente o minimalismo desse álbum como uma tentativa de aproximação de Bowie com o movimento punk que surgia.

Porém, homem renascentista, artista visionário que era, David Bowie já havia lançado em 1974 um álbum falando de um futuro distópico de “gangs” e crianças catadoras de lixo, influenciado pelo livro 1984 do escritor inglês George Orwell e pelo escritor beat o Norte americano William Burroughs. Seu álbum Diamond Dogs segundo a opinião do próprio Bowie antecipou a estética punk (aquela do jovenzinho da classe trabalhadora britânica, de cabelos vermelhos espetados e dentes podres)

Curioso notar que a “Joy Division”, uma das muitas bandas influenciadas por Bowie, nascido na cidade de Manchester, foi uma das maiores catalisadores da fusão punk/eletrônico. E foi exatamente em sua Manchester que se iniciou a revolução industrial. Onde anos depois dessa revolução, um rico empresário, tentando introduzir o filho nos negócios da família, faz com que nasça em seu filho justamente um sentimento contrário do que planejava. E preocupado como a forma em que esses trabalhadores viviam, explorados nessas fábricas, ao lado de um filósofo judeu-alemão cria um manifesto.

Não que os temas como a parafilia homem-máquina fosse algo novo. Ou a violência das gangs juvenis num futuro estéril. Em 1973, J. G. Ballard, já havia lançado o seu intragável Crash. Blade Runer, de Philip K. Dick, foi lançado em 1968, como parte de uma coletânea de contos Do Androids Dreams of Electric Sheeps? E mesmo Laranja Mecânica, de Antony Burgess, muito antes disso, em 1962. Mas a consolidação do gênero “Cyberpunk”, tal como o conhecemos hoje, se deu no início dos anos 80 do século XX com o livro Neuromancer, do escritor norte- americano William Gibson.

Influenciado por William Burroughs , assim como Bowie no processo criativo do álbum Diamond Dogs, Gibson usa além dos temas da tecnologia, como uma forma de ferramenta de uma sociedade degenerada, o controle e a repressão de um Estado totalitário. Aspectos do humor negro de Burroughs estão lá também, bem como os assaltos ao inconsciente- às vezes de forma arbitrária, ou induzido pelo uso de drogas- os jargões das ruas e o neologismo como forma de linguagem.

Termos tão populares hoje como Cyberespaço e Matrix (Uma espécie de alienação coletiva virtual, onde a sociedade todas está plugada. Sabendo de “tudo” sobre “todos”.) foram criações suas, bem como as próteses cibernéticas, que dava às imagens de alguns dos seus personagens um aspecto e um fascínio tais quais as figuras antrozoomórficas das antigas civilizações como a esfinge egípcia, onde não se sabia onde começava o homem e terminava o leão, e aqui nesse caso, onde começa o homem e termina a máquina. E justamente por ser um estilo, por sua própria natureza, cheio de “imagens”, talvez, e por isso, teve mais êxito nas adaptações feitas para o cinema do que se firmar quanto um tipo “sério” de literatura, levando em consideração outros gêneros como o romance policial, por exemplo.

De certa forma, Gibson retoma- ou o gênero criado por ele– os questionamento de Sócrates e Platão, onde nesse mundo, não estamos muito certos de “quem realmente somos” ou “o quão real” é tudo que está a nossa volta. Pois seus personagens sempre agem dentro de um campo intangível, levados por estímulos mecânicos e sensoriais a uma realidade que é a um só tempo real e fantasmagórica.

Mesmo com as muitas adaptações de sucessos ao cinema, o gênero cyberpunk ao longo dos anos desde Neuromancer se mantém de forma precária, descrente de créditos. Ainda assim no Brasil, nos anos oitenta do século XX tivemos ótimos escritores que se aventuraram nessa linha, como o paulista Ignácio de Loyla Brandão e o paraibano Bráulio Tavares, bem como hoje séries que tocam no tema, se não na forma, mas no conteúdo, como Black Mirror.

Imagem: Hell: A Cyberpunk Thriller

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