Os mascarados – Parte 1

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Quando foi que aquilo começou? Há muito, muito tempo. O mundo se dissolvia, como uma grande ilusão. Ali era o único canto onde estariam a salvo. O único lugar onde a falta de ar se daria apenas pelas bocas coladas uma noutra. Onde beijos e abraços não transmitiriam mais do que calor e umidade. Tampouco importava a ela o odor que subia da pia. Ele a chamava, e ela estava ali. Um amálgama de pele, de músculos. Às vezes tinha um nome, um rosto. Às vezes, não. Era perfeita, ainda assim.

Do peito, desceu os beijos até a altura da cintura. Ele, temendo de repente a vertigem, segurou-lhe a cabeça com firmeza. Então ela emergiu à superfície. A água ainda escorria, dos cabelos às costas. Ele gostou do que viu. Ela sabia. Ele se aproximou. Sentiu a rigidez daquele quadril e quis para si. Lentamente a invadiu, e foi invadido por ela.

A face contorcida em espasmos, a respiração ofegante. Está tudo bem? Os gemidos, uma espécie de reação às estocadas de algum punhal. Está tudo bem? As batidas à porta. A água caindo do chuveiro há um bom tempo. Por que não responde? Por que não responde?

Já terminei, disse, enfim, entre soluços.

O mundo-tumor se fazia ouvir do outro lado da porta. Assinalava na palma de sua mão. Líquido pegajoso translúcido. Deixava que seu odor escapasse pela pia do banheiro. Deixava-se sentir debaixo dos pés, escorregadio, e nos cantos da parede. Raios amarelos entravam pela pequena janela aberta. O sol nunca mais brilhou como antes.

 

***

 

Os mascarados estão amontoados, uns sobre os outros, discursando, temendo por seus empregos. Alguns ali nem isso têm mais para temer. Ninguém dá a mínima para a distância nem para a chuva que começa a cair. Todos querem receber. Alguém espirra na fila. Gotículas caem sobre seu pescoço. A pessoa às suas costas se desculpa. Com a máscara abaixo do queixo, sorri, mostrando as gengivas. Não fosse a brutalidade do espirro, pouco haveria diferença se as gotas que caíram nele haviam saído daquele nariz largo ou se era Deus mijando sobre sua cabeça

Um dos mascarados diz que o vírus foi criado pela imprensa. Outro, afirma que foram os comunistas. Uma mascarada diz que a ciência não é maior do que Deus, enquanto a fila se desloca poucos centímetros, com sofreguidão. A chuva aumenta de intensidade, molhando os recibos de conta que ele havia levado para pagar. As pessoas que passam de ônibus ou de carro, outros mascarados, os veem ali. Colocam suas cabeças para fora. Quando será que as equipes de TV virão nos filmar?, pensa.

Limão, alho e mel que você fica bonzinho. Na minha época nunca existiu isso. Fui criado assim. Ninguém morria de gripe.

Os mascarados creem em bruxarias.

 

Um homem, que havia dormido na calçada guardando lugar na fila, descobre que não poderá receber. Inconsistência nas informações. Ele não se conforma. Empurra o funcionário que veio organizar a fila. Chuta o vidro da agência. Os vigilantes são acionados. Conseguem, a muito custo, contê-lo. A polícia chega em seguida. O homem é levado no camburão. Uma jovem chega com uma criança no colo. Consegue uma vaga na preferencial. Pelos olhares cerrados dos mascarados, eles a estrangulariam. Ela e a criança. Outra mulher chega e toma o seu lugar na fila, na entrada do banco. Não podiam provar, mas alguém afirmava que a jovem mãe havia vendido o canto.

Desculpe, falou ele, por trás de uma porta de vidro, com a voz abafada por sua máscara, mas, infelizmente, o senhor não vai conseguir receber esse dinheiro. Houve um erro de digitação, talvez no seu cadastro, por parte da empresa onde o senhor trabalha. Infelizmente, o senhor vai ter que esperar. Eu sinto muito.

Outro dia, alguém deu como receita a ingestão de desinfetante ou seu uso diretamente nas veias.

Talvez não fosse má ideia. Como limão, alho e mel.

 

 

***

 

Te falei da Sônia?

Por que ele deveria saber daquilo? Qual seu interesse em saber de uma notícia como aquela? Àquela hora da manhã, enquanto tomava seu café? Ela o dizia lá da porta da cozinha, enquanto lançava fumaça no ar. Em um de seus pulmões havia uma fibrose, sequela de uma antiga pneumonia. Ela tinha medo do contágio. Mas não deixava de fumar seus cigarros baratos cheios de aditivos químicos, nem de apelar também para as guimbas.

Ele olhava para aqueles olhos, para aquelas pálpebras caídas, escuras, e procurava a mulher com quem um dia se casou. Talvez, da mesma forma que ela o observava e procurasse na falta de alguns fios de seus cabelos — e nos fios cinzas que sobravam, cada vez mais cinzas — o homem que um dia ele foi. Tentando compor um quadro antigo, como faz um restaurador, usando apenas como referência o pouco do que lhe sobrou, enquanto o tempo não transformava tudo em pó.

Ela estava com a mania muito grande de, além de passar álcool, passar sabão…

Normal, respondeu, entrecortando-a.

Sim, mas a todo momento?

Bem, ela estava com essa mania de a todo momento usar álcool e sabão. Às vezes, detergente. Usava muito mesmo. Até que ela percebeu a mão descamando. Depois, noutra semana, foi ficando vermelha. E coçava. Aquilo foi deixando ela louca. Pensou que poderia ser…

 

Mas os sintomas não são esses.

Eu sei, eu sei. Mas cada um que diz uma coisa a cada dia. Ninguém sabe mais nem no que acreditar…

As pessoas estão enlouquecendo…

O rosto dela começou a coçar também — ela achava que havia passado para o rosto, então começou a coçá-lo. Coçava, coçava. As unhas começaram a vir com pedaço de pele. O rosto infeccionou. Tá todo inchado. Tá tomando antibiótico.

Ela deveria procurar um psiquiatra. O que você tá fazendo?

Tô procurando umas guimbas que joguei no quintal.

 

Animal nenhum deveria ficar preso, pensou, enquanto olhava para o filho, uma criança, já esgotada. Melhor seria a morte. Só o pássaro, que criavam em uma gaiola, só a ele parecia haver motivos para cantar dentro daquela casa. E por que cantam os pássaros presos? Alguns afirmam que é de tristeza. Outros, para passar o tempo gastando a energia que deveriam usar na busca por comida. Sem que o vissem, aproximou-se da gaiola. O pássaro se debatendo na grade de um lado a outro — como sempre fizera — ele colocou a mão pela portinhola e o agarrou, observou-lhe a agonia entre seus dedos, na palma de sua mão, depois lançou-o ao ar. Ao filho e à esposa, disse que, enquanto colocava comida, o pássaro escapou.

Passaram-se dias até que encontrou o pássaro que havia libertado. Estava próximo à gaiola. Não tinha dúvidas, pois era a mesma espécie, e havia um sinal de nascença em uma das penas. Aquilo o deixou encabulado. Talvez não tivesse chance lá fora, não soubesse mais como obter comida. Fora aleijado. Talvez fosse como alguns presos, que mesmo tendo cumprido sua pena, postos em liberdade, voltavam a praticar delitos. Tinham se tornando, por assim dizer, patologicamente irrecuperáveis. Quando tudo isso acabar, o que seremos? Para onde retornaremos? Pensou. Pegou o pássaro. Colocou-o de volta à gaiola.

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