Os mascarados – Parte 2

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Até que houve o caso da jovem violentada.

 

No início daquela semana, já davam notícias de alguns saques registrados em algumas cidades do país e o aumento recorde no número de mortes. Não havia mais corredores à frente da linha de chegada. Só números a serem quebrados. E a velocidade era tamanha que ainda havia tempo para sorrir para uma foto, porque os outros competidores estavam a uma distância a perder de vista. Traumatizada, a garota não soube muito o que dizer, dar maiores detalhes do caso em que foi vítima. Lembrava apenas que o criminoso usava uma máscara.

 

Os mascarados passaram então a desconfiar uns dos outros. Vigiando cada atitude que consideravam suspeita. Alguns passaram a estocar comidas, outros, andavam armados. Quem poderia confiar em uma pessoa que esconde o rosto? Falou um deles dando o general como exemplo de alguém que tinha a coragem de enfrentar a coisa ali, cara a cara. Isso não existe! Isso foi inventado! Se não fosse por conta dessas máscaras, agora nós saberíamos quem foi!, bradavam. Então encontraram o culpado. Um homem que andava por ali a revirar latas de lixo na companhia de seu filho em uma carroça velha.

Foi ele, com certeza! Já o vi aqui um dia olhando para nossas casas!

Ele tem o costume de bater palma e pedir esmolas.

No mínimo era para saber se tem gente, disse outra pessoa.

O filho da puta deve ter aproveitado que a garota estava só e estuprou ela!

Mas isso não vai ficar assim não!

 

Um dia um mascarado o viu de longe. Ligou para os outros. Resolveram atocaiá- lo.

 

O homem parou em frente a uma das residências. Revirou o cesto de lixo, como de costume, enquanto o filho o aguardava sentado, na carroça. Um dos mascarados abriu o portão de sua casa, com uma das mãos às costas. O homem que revirava o lixo parou e o fitou. Ficou sem jeito. O mascarado percebeu que o carroceiro não usava máscara, assim como o filho. Esbouçou uma expressão amigável através dos olhos, enquanto os outros mascarados se aproximavam, cada um com uma das mãos também às costas.

Percebi que o amigo não usa máscara. Não tem medo de se contaminar?, indagou o mascarado.

O homem respondeu:

Quem vive nessa vida tá sujeito a tudo, num sabe? Tenho medo não. Se tiver de morrer, Deus é quem sabe da hora. Mas eu tenho, sim, uma máscara, senão num consigo entrar nos cantos… não me deix..

 

Antes de terminar a frase, uma paulada lhe atingiu nas costas. O garoto gritou, pulou da carroça para acudir o pai, mas foi contido por outro mascarado. E nem seus gritos e nem os gritos de seu pai, pedindo misericórdia, foram suficientes para impedir a fúria dos porretes e barras de ferro, quebrando ossos e espalhando sangue. E tamanha era a fúria dos mascarados que se abateu sobre aquele homem no chão que até a besta que carregava a carroça fugiu assustada. E, no final, quando os mascarados o libertaram, o garoto caiu sobre aquela massa amorfa de carne e sangue, impossível de se reconhecer, seu pai.

A notícia do linchamento se espalhou no mesmo dia, porém, não encontraram os culpados. Ninguém conseguiu reconhecê-los.

Todos estavam de máscaras.

 

***

 

Já há alguns anos vinha percebendo o quanto estava sendo difícil viver ao lado dele. Agora, tinha certeza, o quanto seria duro morrer. Você tá me escutando? Disse para lembrar-lhe do sangue que havia encontrado em seu escarro, pela manhã, e para o qual não dera a menor importância. Você agora parece que vive em outro mundo. Mesmo quando você está comigo, me sinto só. Ele esteve a ponto de lhe dizer que sim, que ultimamente anda no melhor dos mundos, dentro daquele banheiro, todas as vezes que tomava banho. Porém, preferiu ficar calado. Tomando seu café.

Depois da garota violentada, dos saques e dos surtos de violência, soldados passaram a patrulhar as ruas para conter os mascarados. Uma junta militar se instalou, de forma interina, e assim tentar estabilizar o caos nas ruas. Porém, as mortes não cessavam. Os boatos, agora mais fortes, davam contam de que talvez “a coisa” tenha sido mesmo criada em laboratório. E que agora, confinados, dariam eles, os mascarados, o toque final, já que só podiam amar uns aos outros em tese.

Não era incomum que pais espancassem seus filhos, e maridos, suas mulheres. Ricos cometiam suicídio pelo tédio de tudo ter. Pobres, por um prato de comida matavam ou morriam.

Por que você não colocou o molho do jeito que te mandei, seu satanás?, bradava um dos vizinhos, um pastor, do outro lado da parede. Por que você não pode me obedecer? Você tá com algum demônio no couro que não me escuta? Perdão, esposo, perdão e… De repente, o barulho de mesa e de talheres ao ar.

Ele sabia o que ia se seguir. Deixou a xícara sobre a pia. Pegou o controle e ligou a televisão, num volume alto, para que seu filho não escutasse aquilo que acontecia do outro lado da parede.

Coveiros, em alguns estados, já são insuficientes. Já se discute, inclusive, o uso de retroescavadeiras.

 

Por favor, não, por favor, esposo, não!

Aumentou mais o volume.

É pra você aprender!

Estilhaços de vidro no chão e movimentos. Como gato e rato.

Nãããooooo! Socorro! MEU DEUS, ME AJUDE!

 

Muda o canal e aumenta o som da televisão.

Nem a presença dos soldados intimidou os mascarados, que, famintos, levaram tudo o que puderam do supermercado. O segurança do supermercado, que também estava armado, tentou reagir, mas não foi suficiente…

E novamente.

Do outro lado da parede, o som de baques surdos que a faziam estremecer. E nem o volume alto da TV impedia que se ouvisse aquilo. Mesmo assim, ele continua a aumentar o volume, e a passar os canais.

Fala-se em canibalismo em algumas regiões do interior do Nordeste.

Não… Meu Pai, chega aqui, Senhor…

Sua vadia!

Mais alto.

Um pai teria comido o próprio filho, morto de inanição.

A criança tapa os ouvidos. Sua esposa está lá fora. Ocupada em morrer, escarrando sangue.

Até que as pancadas no outro lado da parede cessam.

Ester? Ester?

Não houve resposta.

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