Tony Clayson

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Pediu pra ficar só. Subiria ao palco em instantes. Do camarim improvisado que lhe arranjaram, escutava o burburinho lá fora, a voz que anunciava: daqui a pouco, com vocês, o Rei das Domésticas TOOOOONNNNIIIII CLAYSON! Tirou o pingente que guardava por dentro da camisa e beijou a cruz três vezes. Levantou os olhos aos céus. A melhor chance em anos! Qual é a Música, Programa do Bolinha, Churrascaria do Batata. E um puteiro qualquer das Rocas. Foi lá que o encontraram, magro e abatido, em uma das mesas. Consumido pelo vício. Alô? Vocês não têm aquele quadro “Por onde anda”? Pois é, tô aqui com aquele cantor, Tony Clayson. Ele tá bem mal, sabe? Precisando de ajuda.

E aí, meu grande cantor! Diz Beto, ao se aproximar com uma garrafa de uísque na mão. Tá aqui, cortesia do nosso candidato José Américo especialmente pra você. Ele tá lá discursando e quando terminar você entra, tá entendendo? Vim aqui rapidinho só pra ver se tava tudo certo.

Tony Clayson responde com um aperto de mão e com os dentes que José Américo tinha dado a ele. Obrigado. Nem sei como agradecer o que vocês têm feito na minha vida.

Deixa de besteira, homi. Limpa essas lágrimas. Tome. Coloca aí o Raybanzão no rosto. Isso. Tô gostando de ver! Olhe aí no espelho, tá vendo? Tony Clayson! O Rei das Domésticas! Seu público tá lá fora. Te esperando! To-ny! To-ny! Deu duas palmadas em seu ombro e partiu.

Ele estava certo. Quem esperaria por José Raimundo da Silva? Escutou isso de empresário. Você tem que pensar em mercado. De repente, até emplacar em trilha de novela. Já pensou? Se seu inglês é ruim? E quem se importa? “Fui mandado para a prisão por ter assassinado minha esposa. Porque ela tava saindo com outro. Eu perdi a cabeça e atirei nela.” E tá aí. Todo mundo dançando de rosto coladinho. Mark Davies, Tony Stevens, Morris Albert! Para todos os efeitos, Tony Clayson não havia nascido no Rio Grande do Norte, e, sim, no Rio de Janeiro. Nem muito menos morava de favor na casa de um tio ou trabalhava de servente. Se puder nem dizer que é aqui do Brasil, melhor.

Foi Tânia quem os apresentou lá no Xangai. Ela achava graça toda vez que ouvia dele: Você é minha garota, Tânia. Ao que ela sempre respondia: Puta só tem amante, Tony.

Tá aqui, ó, estendeu-lhe um cartão, com o nome Anselmo. Me procura amanhã no meu escritório. O escritório consistia num pequeno cômodo, em cima dum bar, dentro de uma favela carioca. O importante é visão, Tony. Visão! Agora escuta. Eu molhei a mão de um disc jockey pra tocar mais músicas suas. Ele me disse que os pedidos têm aumentado. E é sempre uma doméstica na linha. Ótimo! Que se foda! Quem é que quer ser um Chico Buarque se você pode ser um Rei? Vamos ter que dar uma mexida no teu visual também. Tony Clayson, o Rei das Domésticas! Pronto! Vai ser assim! De dentro da camisa, sacou um pequeno cilindro que lembrava um isqueiro. Tirou a tampa e despejou em cima da mesa um pó cristalino. Organizou em uma fileira e como num passe de mágica fez sumir diante de seu nariz. Levantou o rosto sorridente para Tony.

O que é? Perguntou Tony.

Tu não sabe?

Não. Sei não.

Porra, Tony! Tu acha que tá em qual ano, malandro?

“Foi você que quis assim”, com seu refrão Foi você que quis assim, trocar nosso lindo amor por uma aventura infeliz, transformou Tony num dos cantores mais populares naquele ano – bem próximo a Odair José e Fernando Mendes. E como diziam na época, não tinha um puteiro em que não rolasse Tony Clayson.

Estava famoso. Recebia inúmeros convites para participar de programas de auditório. Com agenda lotada, hospedava-se nos melhores hotéis. Conheceu gente importante, mulher de general. Até Marinho Chagas! Logo comprou um colar de pérolas para Tânia. Apresentava-a como sua namorada. E quem poderia dizer que não era?

Um dia Anselmo o chamou a portas fechadas. Começou a falar de novos planos. Mercado latino, um disco em espanhol, enquanto deitava outra carreira de pó sobre a mesa. E então emendou:

Ah, outra coisa: lembra que no começo foi aquela dureza e a gente teve que fazer investimento? Pois é. Agora a conta chegou, disse, enquanto passava o polegar no nariz.

Sei.

Então, é o S. Ernesto. Aquele do qual te falei. Que tem uns negócios com bicho lá no morro. Metido com escola de samba.

Que é que tem?

Bem, ele tá querendo pegar o que ele nos emprestou, com juros, é claro – falou, enquanto deitava uma carreira de pó. Separando com uma lâmina.

Nos emprestou? A gente tá falando de quanto?

Uma ninharia.

Anselmo não esperava pela recusa de Tony. Daí ficou possesso. Jogou tudo em sua cara. Chamou-o de ingrato. Paraíba de merda. Disse que se não fosse por ele, Anselmo, Tony viveria ainda sem ter o que comer. Que tinha influências e por isso sua vida seria um inferno. E foi. Logo vieram as campanhas difamatórias. As manchetes, como aquela dizendo que a polícia encontrou entorpecente no quarto onde estava hospedado – e que misteriosamente não soube explicar –, as ações por perdas e danos. Até temas comunistas enxergaram em suas letras! O dinheiro foi sumindo, os amigos também. Pediu a Tânia aquele colar de pérolas de volta. Entregou-se ele também ao vício. Voltou a Natal. Tânia, ao puteiro.

O público já estava se irritando com a demora, ensaiando as primeiras vaias, quando, de repente, eis que ele surge: cabelo grande, anéis nos dedos e aquele Ray-Ban! Saudou todos com deferência, acenou para algumas senhoras que gritavam seu nome perto do palco e começou os primeiros versos de Foi você que quis assim…

Não sei não… Tá meio estranho…

Mulher, tu não entende nada. É porque é ao vivo! Na TV é diferente, respondeu Doda.

Uma ambulância, com as sirenes desligadas, estacionava na lateral da associação de moradores do bairro, transformada em camarim improvisado.

Quem disse que era para esse idiota beber tudo isso? Falou José Américo para seus assessores, metidos em um semicírculo.

Olhem, limpem essa merda. Eu não quero nem saber do meu nome envolvido nisso.

Eu dei um jeito, governador, disse Beto, aos sussurros, enquanto acompanhavam a equipe realizar a manobra dentro do camarim. Mandei que o vestissem de Tony Clayson… Ninguém percebeu… Ninguém sabe que ele esteve aqui. O carro vai sair pela lateral. Falei com eles.

Ótimo, ótimo, Beto – disse o governador, dando-lhe tapinhas no ombro.

Conto do livro “Inventário do Tempo e da infância”, em desenvolvimento

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