A gente se acostuma

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Eram cinco e meia da manhã. Menos por medo, mais por distração, fiquei ali, absorto no livro, enquanto as cabeças se baixavam à altura do joelho e o motorista agilmente engatava a ré. Se o tiro tivesse vindo em nossa direção, num rolar de dados, tanto fazia estar com a cabeça presa nos joelhos ou em Isaac B. Singer. Seríamos sangue e miolos do mesmo jeito. Se universidades são para poucos, eu diria que este País é um enorme campus. “Ladrões há em todo canto”, foi o que me disseram quando viemos morar em Bela Parnamirim de fato. Era o modo de me dizer “mas isso é o normal da vida”. Então quando esse mesmo ônibus, dez dias antes do tiro em nossa direção, deixou um grupo de pessoas na parada à sorte de dois bandidos, que na ocasião também se aproximaram em uma Traxx, não fiquei abalado, porque aquilo que não mata, engorda – um axioma infantil que costumávamos usar quando apanhávamos uma guloseima que caia no chão e levávamos à boca. Na pior das hipóteses, “a gente se acostuma” porque o que há de errado em nosso modo de viver é apenas um pouco de sujeira.

Sujeira e lama, aliás, é o que te espera quando você vem morar nessas cercanias. E até hoje me pergunto o porquê desse “Bela”, senão como uma piada muito boa, por sinal. E fico rindo desses caras que caem em papo de corretor, com seus postes de luz amarela lembrando tochas. Um canto esquecido pelos bandeirantes. Há homens montados a cavalo. Homens derrubando bois. Ruínas tomadas por matos. Picadas abertas por mãos grossas, laceradas. E histórias de fazer correr um frio na espinha durante a noite.

Logo quando você dá nessas bandas, grades é o que não falta. Então entendi, logo de cara, o porquê de pessoas observando o forasteiro com olhar torto e desconfiado. quando, faminto depois de um dia de mudança, no escuro haviam roubado a fiação de nossa casa saí para comprar velas e comida, sujo e cansado. Talvez estivesse mesmo com cara de bandido. A ponto de cometer um crime.

Numa versão moderna de Jesse James ou Billy The Kid, os “boys” que estavam na Traxx e que fizeram o disparo não se deram por (con) vencidos e vieram atrás de nós. Dentro da diligência de metal, ouvia-se desde “Ave-Marias” a “Passa por cima, motorista!”. Lembrei de outra vez, quando a mesma linha foi interceptada por outra dupla. Um dos bandidos subiu e saiu fazendo um arrastão. “Celular ou carteira”, bravejava. Eu tinha um celular velho. O cara ao meu lado, nem isso. Então levou um sonoro tapa na cara e o nome de “vagabundo!”, indo trabalhar às cinco e meia da manhã. Pensei: está prestes a acontecer de novo.

Mas naquele mesmo rolar de dados, que quase nunca dá o número que a gente espera, havia uma viatura da polícia numa das ruas transversais. Os policiais conversavam despreocupadamente quando perceberam os sinais do motorista do ônibus e das cabeças e braços agora fora da janela fazendo gestos desesperados,mesmo na iminência de levar um teco no meio dos olhos e saíram dali cantando pneu com armas em punho, dando o retorno para pegar os boys na rua paralela.

Não sei o que aconteceu aos boys da Traxx. Ouvi dizer, no outro dia, que os PMs os prenderam. Independentemente disso, é como uma guloseima que cai de repente de nossa mão no chão. Fui assaltado quatro vezes, desde que cheguei aqui, até contar essa história. E tive sorte, numa quinta vez, de não ter levado um tapa na cara, pois não tinha mais nada para dar. Amanhã é outro dia. Cinco e meia na mesma parada. Pegando um ônibus para o trabalho ou para o inferno. Mas a gente limpa a sujeira e come. A gente se acostuma.

Imagem: Ivan Cabral

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