Até um cachorro idiota

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O corpo jazia ali, por entre as gramas, no quintal. Tão pequeno que mal preenchia a palma da mão. Ela foi quem primeiro o encontrou. Enquanto brincava. E quanto mais chorava, em frente àquele pequeno pardalzinho deitado na grama, repetia “Por quê? Por quê? Por quê?” Eu apenas limpava suas lágrimas e a cobria de abraços. Presumi que o pardalzinho havia morrido há pouco. Pois não havia formigas ou vermes. Coloquei-o na palma da mão. Não era justo morrer num dia tão bonito de sol. Era em dias como esse que meu pai me acordava todas as manhãs para ir atrás de nosso cão, o Ring. Mesmo a contragosto meu, mesmo no melhor dos meus sonhos, por volta das seis da matina. Cachorro idiota!

Sempre cativo, sem dar sequer uma volta pelas ruas sujas da Cidade da Esperança, balançar o rabo para algumas cadelinhas, latir para outros cães, Ring não perdia a oportunidade – geralmente quando meu pai saía cedo pela manhã, todos os dias, para comprar jornal na banca de revistas da rodoviária nova. Só na adolescência fui entender Ring, seu abanar de rabo para alguma cadelinha ou latido para outro cão.

E assim Ring corria pela extensão de terreno baldio onde eram colocadas as bancas da feira, nos anos oitenta. Lançando-se de encontro ao vento no seu focinho lustroso. Sentindo-o tremular seu pelo dourado de pequinês, bem como as orelhas. A língua sempre à mostra, num sinônimo de prazer, parecia esboçar um sorriso, enquanto que a minha demonstrava somente cansaço. E quando finalmente o alcançava, era porque Ring queria brincar. Eu pulava em sua direção e ele me dava pitu*. Ficava babando, com a língua de fora. Cachorro idiota!

Certa vez, eu estava tão cansado de correr atrás de Ring, e irritado, e com sono, e tão feito de bobo pelos seus pitus, que a única coisa que consegui fazer foi me sentar no chão sujo do terreno baldio, pôr a cabeça entre os joelhos e chorar. Ring se aproximou. Lambeu minhas lágrimas e assim o levei no colo. Feito bobo. Mas foi só dessa vez. Porque no outro dia meu pai me acordou. Por volta das seis da matina.

Até que um dia não precisei mais ir atrás de Ring. Ele havia acordado estranho. O portão tava aberto, como sempre, e Ring nem aí. Ficou deitado. No mínimo para me fazer de bobo, pensei. E quando eu me aproximar, ele arranca. Daí me aproximei. Ring continuou deitado. Sem se mover. Eu estava sozinho em casa. Meus pais haviam saído de carro. Ficamos só eu e Ring. No dia anterior, eu me recusei a ir atrás dele na rua. Minha mãe reclamou muito, meu pai me ameaçou com uma chinela. Mas não fui. Passou um tempo e Ring chegou em frente ao portão. Achei que não tinha necessidade de acordar cedo para ir atrás dele todas as manhãs, quis provar a minha mãe. Mas tinha. Eu soube só depois. Enquanto Ring tava ali, deitado, ele botava sangue pela boca. E foi tanto sangue, e dor, que Ring se urinou todo. Eu levei minhas mãos à cabeça. Puxei meus cabelos. Gritei. Chorei. Chorei tanto ao lado dele. Mas Ring, como sempre, me deu um pitu. Ficou ali deitado, olhando pra mim. Os olhos parecendo me dizer algo. Colocou a língua pra fora e me deixou. Cachorro idiota!

“O que acontece quando morremos?”, me perguntou Júlia.

“O que acontece a uma flor quando a arrancamos e jogamos no chão?”

“Murcha e se estraga…”

“Sim, daí vêm as formigas e os outros bichinhos. E a flor ajuda a criar outras flores na terra. É a mesma coisa que acontece com a gente. Lembra? Sua aula de ciências? Fornecedores e consumidores?

“Mas eu pensei que não acontecia isso com o corpo… que ele ia direto pro céu…”

Tudo bem. Não foi uma das melhores explicações que um pai pode dar a uma garota de nove anos. Mas foi a que eu achei na hora.

“Mamãe, papai disse que quando a gente morre perde o nosso corpo. E eu não quero perder meu corpo. Como vocês vão me ver? Escutar? E como vou ver e escutar vocês?”, perguntou Júlia a mãe, aos prantos. O que me valeu uma reprimenda. Acho até que mereci.

O que esqueci de dizer à pequena é que a gente sempre enxerga quando nos deixam. Quando estão longe.

Até um cachorro idiota.

 

*Dar pitu significa driblar, fazer que tá indo pra um lado e ir pro outro.

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