Barruada

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Ter uma TV colorida em casa já não era mais novidade naquela época. Ainda assim, nem todo mundo podia pagar por uma. As garotas vinham e ficavam assistindo lá do portão, na calçada, até que D. Mirtes mandava elas entrar. Eram duas irmãs que moravam na mesma rua de Neno, em uma casa caindo aos pedaços. Elas, igualmente aos pedaços, sem os dentes da frente, com os rostos manchados e os cabelos queimados do sol, sentavam-se na sala e Neno as observava num outro vão da casa — como quando observamos animais num zoológico — cheio de curiosidade a princípio e depois incomodado com aquelas figuras estranhas que invadiam seu espaço. As garotas também se sentiam incomodadas por estarem sendo observadas, e então era só D. Mirtes dar as costas para mostrarem a língua a Neno. Ah, mas aquilo já era demais! E o que se seguiu todas as noites às costas de D. Mirtes foi a verdadeira guerra fria, com línguas e dedos médios estirados de lado a lado.

Uma noite, porém, quando D. Mirtes preparava a janta na cozinha, Neno foi até a sala e desligou a TV na frente das garotas. Elas nunca mais voltaram. As meninasnão apareceram mais, comentava D. Mirtes. Neno apenas assentia com a cabeça enquanto mastigava seu pão eesboçava um sorriso. Tão confiante estava de seu triunfo que achou que nunca mais aquilo voltaria a acontecer. Mas aconteceu. Semanas depois estava lá, em frente ao seu portão, outra garota.

Ninguém de sua casa a conhecia. Sabiam apenas que trabalhava como doméstica na casa ao lado,de D. Matilde — uma velha solitária que gozava de uma gorda aposentadoria. Todas as noites, na hora da janta, escutavam os gritos de D. Matilde — cachorra, porca, imunda! — e o que parecia ser D. Matilde puxando a garota pelo braço (ou pelos cabelos) e o barulho de vassouras e baldes lançados ao chão. Minha nossa! — exclamava D. Mirtes. Então havia uma pausa… E depois sons de soluços atravessando a parede. Me passa esse pão, pedia Caco a D. Mirtes.

Na casa de D. Matilde tinha uma TV colorida. Mas a empregada não podia assistir. A patroa não deixava. Lucineide — depois vieram a saber o nome — ficava então na calçada da casa de Neno, lá do portão, acompanhado a novela, até que D. Mirtes a convidou para entrar. Lucineide tinha o olhar triste, as pálpebras caídas. Igual a um cão abandonado.

***

Ninguém gostava daquele garoto. Sempre metido em confusão. Pequeno, entroncadinho, usava o cabelo rente, bem curto — como que passasse máquina. Tinha as maçãs do rosto salientes e cobertas de sardas, a caramarcada por uma cicatriz, olhos fundos e pequenos que encaravam você como se estivesse dentro de um ringue. Poucas vezes saia do campinho sem brigar. Morava próximo a um lixão. Andava com Os Boys da Rua Lá de Cima — tipos esquisitos que lhe roubariam se você fosse displicente, ou lhe aplicariam uma rasteira se você desse bobeira.

Assim, o futebol não era o único motivo para começar uma briga com Os Boys da Rua Lá de Cima. Além do mais, tinham apelidos estranhos: Urubeta, Barata, Lambreta — referentes às aparências estranhas —, Braço de Radiola, Pirata e Bonitinho — referentes a algum defeito físico. Os Boys da Rua Lá de Cima não respeitavam nada, brincavam com qualquer coisa, até mesmo com uma tragédia. Deram a esse garoto o apelido de Barruada porque ele tinha perdido os pais num acidente de carro.

“Se eu não jogar, eu bagunço” era o modus operandi dos Boys da Rua Lá de Cima — que sempre se mostrou muito eficiente — então eles sempre jogavam. Mas a última coisa que importava era a bola. Eles eram desleais jogando, faziam sucessivas faltas. A bagunça apenas saia da margem para as quatro linhas. O garoto da cicatriz marcava Neno. Apelava sempre para encontrões. Calços. Rasteiras. Até que Neno levantou-se e o empurrou. O garoto o empurrou de volta. O QUÊ? O QUÊ, O QUÊ? O QUÊ, O QUÊ O QUÊ? O jogo parou. Aos gritos, todo mundo correu pra ver os dois se encarando. MATA! MATA! Primeiro ombro a ombro, peito a peito. Depois, dançando como dois galos numa rinha. O QUÊ? O QUÊ, O QUÊ? O QUÊ, O QUÊ, O QUÊ? Então começou. Atracaram-se,os braçosem volta dos pescoços,um tentando levar ooutro ao chão. Os outros meninos gritavam excitados YYEAAAUUU!!! Jogavam areia sobre os dois. YYEAAAUUU!!! MATA! MATA! Os dois caíram juntos. Socos, chutes e pontapés desferidos, enquanto a areia os cobria. Jotinha entrou no meio e apartou os dois. SEU GALADO, FELA DA PUTA, FI DE RAPARIGA!!!, gritou o garoto com a cicatriz no rosto e agora também com um olho roxo. Lá do lado de Neno, sopraram: Barruada, chama ele de Barruada.

BARRUADA!

Os Boys da Rua Lá de Cima começaram a rir. Neno não entendeu. Não entendia o porquê desse apelido. Mas percebeu que atingiu seu oponente mais do que foi atingido pelo Fela da puta ou Fi de rapariga. Mais do que o soco que deu no olho dele.

Barruada saiu dali e voltou rapidamente com um pedaço de pau que os meninos usavam como trave. Os olhos espremidos para não chorar.

ESSE BOY É DOIDO! SEGURA O BOY, SEGURA O BOY! Então os garotos o empurram. Barruada se afastou. Jogou o pedaço de pau e se foi.

***

Olhe aqui, não deixe seu pai ver! Disse ela e entregou-lhe o pacote. Tá, mãe, respondeu Neno. Peraí, deixa eu ver, disse D. Mirtes olhando para a cicatriz acima da sobrancelha de Neno. O ferimento ainda sarava.

Onde fica a casa desse menino?

Eu não sei…

Você não sabe ou não quer me dizer?

Eu não sei… Já disse que não sei!

Neno, se você estiver me escondendo alguma coisa… Eu só queria saber quem é a mãe desse menino! Ia aonde ela estivesse pra falar sobre ele! Que fica por aí batendo no filho dos outros! Não crio meu filho pra ficar apanhando na rua! Ainda bem que o seu pai não soube dessa história! Agora vá lá! Leve essa comida e não deixe seu pai ver! O nome dele é Edson. Ele é irmão de Lucineide! Ela disse que ele já tá esperando na esquina.

  1. Mirtes havia combinado com Lucineide que enviaria um pouco de comida para ela e o irmão. Longe dos olhos de D. Mathilde e longe dos olhos do esposo. Cabia a Neno essa missão. Era noite,mas Neno o reconheceu antes que chegasse à esquina.Sob a luz de um poste, ele o esperava. Baixinho, entroncadinho, com uma cicatriz no rosto. “Porra, ele me seguiu. Vai querer revanche!”, pensou. A poucos metros Neno parou. Barruada se aproximou. O olho no qual Neno desferiu um murro, Neno pode ver, estava ainda mais fechado.

Neno disse: Não vim aqui pra brigar, estou esperando uma pessoa com o nome de Edson e…

Meu nome é Edson, disse Barruada.

Neno estirou a marmita sem nada dizer. Olhou para o olho roxo de Barruada. Estava feio. Muito feio, em comparação com o pequeno corte em sua sobrancelha pelo qual D. Mirtes se doeu tanto. Tentou ensaiar um pedido de desculpas por tê-lo atingido daquela maneira. Por tê-lo chamado por aquele apelido, mas não disse nada. Barruada pegou a marmita, também sem nada dizer, e foi embora. Com  aquele mesmo olhar triste da irmã. As pálpebras caídas. Igual a um cão abandonado.

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