A indústria de jogos passa por um momento em que vários verbetes de significados anteriormente claros e objetivos passam a assumir um sentido mais nebuloso. Uma delas diz respeito ao sentido daquele campo semântico dos remakes, remasters, ports e afins. Dead Rising Deluxe Remaster é um exemplo muito claro de como a aplicabilidade desses termos pode prejudicar a visão do público sobre um produto.
Dando um rolezinho no shopping de Willamette
A partir da segunda metade dos anos 2000, um movimento de ressurgência de obras de zumbi ditou boa parte da produção cultural. No audiovisual, tivemos, por exemplo, os filmes Guerra Mundial Z (World War Z) e o remake de Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead); as paródias Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead) e Zumbilândia (Zombieland); e o seriado The Walking Dead gozaram de relativo sucesso, seja ele comercial ou crítico.
Nos games, Resident Evil, que naquele momento já era um clássico consolidado, se aproveitou dessa tendência e foi acompanhado por novos títulos, como Left 4 Dead e Dead Island, além do fato de que outras marcas completamente sem correlação com o tema quiseram se aproveitar de tal filão, como é o caso de Red Dead Redemption: Undead Nightmare, Yakuza: Dead Souls e Call of Duty, que implementou o modo zumbi pela primeira vez em World At War, em 2008.
Resident Evil, entretanto, não seria a única abocanhada que a Capcom daria nessa onda, já que o primeiro Dead Rising foi lançado exclusivamente para o Xbox 360 em 2006, um momento bastante oportuno, considerando a forma com que a febre iria se desenvolver depois. Embora dividam a mesma temática, é importante ressaltar que ambas as marcas apresentam características diametralmente opostas: enquanto a primeira se apega a uma toada mais soturna em progressão relativamente mais linear e que aposta na qualidade individual de cada zumbi na tela, a segunda aposta em volume.
O advento de cada nova geração de consoles costumava trazer sempre uma corrida entre os desenvolvedores no intuito de serem pioneiros em experimentar certas abordagens que as plataformas mais potentes passaram a ser capazes de oferecer. No caso de Dead Rising, a ideia central era basicamente colocar em teste quantos elementos em tela o hardware do X360 seria capaz de processar.
Nisso, eles conceberam a ideia básica de um shopping — já que o mundo aberto teria que ser dividido em algumas seções, algo natural de uma arquitetura como a de um centro de compras — e quiseram arriscar: quantos zumbis caberiam em uma única tela? É dessa premissa que surge a história de Frank West, um fotojornalista que ouve rumores a respeito de uma crise na diminuta cidade de Willamette, no Colorado, e decide cobrir o furo in loco.
Chegando ao epicentro da crise, nosso intrépido repórter descobre não só a respeito do surto de contaminação zumbi, como também do estado de sítio imposto no local: ninguém entra, ninguém sai. A partir daí, o protagonista tem setenta e duas horas (dentro do tempo de jogo) para coletar o máximo de informações possível antes de ser resgatado dentro do tempo combinado com o piloto de helicóptero que ele contratou.
Assim, o primeiro diferencial de Dead Rising é o limite de tempo imposto ao jogador, que deve gerenciá-lo a fim de concluir todas as missões principais da campanha ao mesmo tempo em que segue aproveitando algumas janelas para zanzar no cenário do game enquanto completa certas atividades paralelas, como resgatar outros sobreviventes espalhados no local e conduzi-los à sala (segura) de segurança.
Esse gerenciamento de tempo é importante porque coloca a escolha nas mãos do jogador, já que boa parte das missões principais podem ser praticamente ignoradas se Frank não estiver no local determinado a tempo. Tudo é cronometrado e o desempenho acaba resultando em uma lista distinta de conclusões narrativas para o game. Assim, é necessário salvar estrategicamente para o caso de não conseguir chegar a certos furos — jargão jornalístico para informação exclusiva que aqui representam as sidequests — ou caso um desenrolar imprevisto de algum deles atrapalhe no avançar da campanha principal.
Ou seja, boa parte do desafio reside na ideia de movimento. Isso vale não só para o protagonista, mas também para a extração e escolta dos sobreviventes, que vão aos poucos contando histórias sobre como eles sobreviveram e sobre entes perdidos. Em um centro tão lotado de mortos-vivos, Frank acaba tendo que se virar de várias formas, e é aí que entra outro aspecto central da série: a possibilidade de usar praticamente qualquer coisa como arma.
Por sorte, um shopping center é um local bastante diverso no que diz respeito ao leque de serviços oferecidos, o que se reflete em possibilidades para Frank, que pode roubar comida da praça de alimentação e do supermercado para de recuperar sua energia, ou ainda saquear as lojas de armas no intuito de conseguir recursos para erradicar os carniceiros e psicopatas (chefões humanos que simplesmente se aproveitam da situação para tocar o terror) que encontra pelo caminho.
Mais do que esses itens com finalidade pré-concebida clara, o jogador pode se aproveitar de tacos de beisebol, bolas de boliche, mesas, cadeiras, equipamentos de jardinagem e marcenaria e vários outros tipos de bugigangas para conseguir avançar pelas hordas de mortos-vivos. É aí que entra talvez um dos maiores reveses de Dead Rising Deluxe Remaster: por mais que certos sistemas tenham sido atualizados para além da recauchutagem gráfica, o título ainda é o mesmo de quase vinte anos atrás e segue à sombra de suas sequências.
Não se esqueça: Dead Rising ainda é um jogo de 2006
Quando você tem uma série que passa por evoluções claras, não é incomum que boa parte de suas incursões iniciais pareçam notoriamente precárias. No caso de Dead Rising, por mais que ele tenha sido um marco à sua época por oferecer um leque considerável de possibilidades de utensílios que podem ser usados contra os zumbis, ele ainda fica muito aquém perto das conquistas de suas sequências.
Dead Rising Deluxe Remaster, de fato, traz algumas poucas melhorias muito bacanas no que diz respeito à vida útil do game, como é o caso da possibilidade de acelerar o tempo in-game no intuito de fazer com que o jogador tenha que ficar esperando menos pelos tempos das missões principais ou secundárias, por exemplo. Entretanto, melhorias de qualidade de vida não significam a adição de recursos que poderiam aprimorar ainda mais a experiência da jogabilidade e atualizá-la para o mercado moderno.
Uma das coisas mais hilárias dos dois primeiros jogos da série é como eles retratam uma visão estrangeira dos Estados Unidos, algo que se perde um pouco quando o desenvolvimento passa para os próprio norte-americanos.
Uma comparação que acaba se mostrando bastante pertinente aqui é com Lollipop Chainsaw RePOP. Enquanto a remasterização da Dragami Games apresenta mudanças substanciais mínimas em prol da jogabilidade básica, é importante levar em consideração que não houve nenhuma sequência que sugerisse sistemas que poderiam ser naturalmente aprimorados. Além disso, trata-se de uma proposta bem mais objetiva e direta, sem tanta ambição, como é o caso daquela apresentada pela premissa original de Dead Rising, que é justamente a de oferecer um número sem igual de possibilidades para serem usadas para uma quantidade exponencial de zumbis em tela.
Lollipop Chainsaw é um título cujos defeitos sempre fizeram parte de sua jogabilidade e da experiência de jogo. Mexer nisso seria descaracterizá-lo. Dead Rising Deluxe Remaster, por sua vez, passa pelo exato processo de descaracterização dentro de seu próprio escopo de trabalho como franquia por apresentar menos opções do que suas sequências. Dead Rising apresentava espaço para uma melhora nunca alcançada que Lollipop nunca teve.
Ou seja, o time da Capcom responsável pela remasterização poderia ter levado esses aspectos em conta e dado um jeito de implementar, de alguma forma, certos sistemas introduzidos posteriormente na franquia, como é o caso do crafting que permite a concepção de armas ainda mais malucas e, para fortalecer o recurso, espalhar alguns outros tipos de armas pelos ambientes já existentes do shopping de Willamette. Essa visão ainda potencializaria as outras melhorias do Deluxe Remaster, como é o caso do sistema de mira e da movimentação do próprio Frank West.
Dentre outras revisões, agora consta a possibilidade de acelerar alguns diálogos, além de um modo fotografia mais encorpado. Para nós, brasileiros, a principal novidade fica por conta da localização completa, incluindo vozes, em um trabalho que ficou tão bem-feito que parece até que sempre esteve lá.
Visualmente, a nova roupagem foi providenciada pela RE Engine, o principal motor de jogo da Capcom hoje, e embora os cenários tenham ficado realmente interessantes, vivos e verossímeis, o mesmo não pode ser dito das expressões faciais dos personagens humanos. O próprio Frank, por exemplo, parece ter envelhecido uns trinta anos desde então e agora se assemelha a um Will Arnett depois de uma harmonização facial que deu errado. A despeito desse aspecto, embora Dead Rising Deluxe Remaster definitivamente não seja jogado como um game de 2024, ele ao menos se assemelha a um jogo de 2024.
Por sorte, Frank ainda é o mesmo personagem divertido de se acompanhar — especialmente por conta de seu suposto senso de moda, já que existe uma gama respeitável de indumentárias que podem ser afanadas das lojas e vestidas pelo fotojornalista. Ele continua aquele cara que corre troncho, rola troncho, ataca troncho e pula troncho que conhecemos.
Não se deixe enganar: a Capcom não se esqueceu de Darkstalkers, ela só não liga mesmo.
Daí, isso sim é uma parte inerente da jogabilidade de Dead Rising que não precisa ser alterada, ainda que esta reedição traga um novo esquema de controle, mais intuitivo, que facilita a movimentação de forma considerável e provavelmente se enquadra como uma das mais subestimadas revisões aqui, já que é um dos poucos aspectos que conseguem alcançar o equilíbrio entre o clássico e o moderno.
Realmente, é chato ficar nesse vai e vem a respeito do que deveria ser mudado e não foi, mas fica difícil entender Dead Rising Deluxe Remaster como um produto que realmente se sobressaia diante da remasterização normal do jogo original. Não adianta carregar o código principal em um novo motor de jogo se ele ainda apresenta os mesmos bugs de 2006, como problemas de colisão, dificuldade na identificação dos itens interagíveis ou cutscenes que falham em carregar, além dos zumbis pop-in que surgem com atraso.
Essa talvez é a maior denúncia de que eles não mexeram no título como realmente poderiam, já que simboliza que o sistema não carrega as seções do shopping por completo, uma arquitetura que fazia sentido no lançamento original, mas que atualmente poderia ter ficado para trás, já que os consoles atuais são plenamente capazes de reproduzir os ambientes fechados, que nem são tão complexos ou grandes para os padrões atuais, na íntegra.
Sabe o que mais? As telas de carregamento entre as seções ainda estão presentes, algo que não faz sentido algum. Quem jogou o original sabe muito bem que essas atuais demoram praticamente nada em comparação, mas ainda assim poderiam ser melhor disfarçadas com telas de fade-in/fade-out, por exemplo.
Com isso, na hora de aprimorar seus sistemas, cujos problemas já foram identificados e sendo debatidos há quase duas décadas, os desenvolvedores poderiam ter se valido de maior ousadia. Todas as melhorias ficam no campo do quase.
A partir daí, o ponto de vista central para entender Dead Rising Deluxe Remaster acaba sendo o da comparação. Quem jogou o original, lá atrás, vai perceber um leque considerável de melhorias que acabam favorecendo a experiência como um todo, mas ainda sentirá falta de boa parte dos avanços promovidos ao longo da história da série, seja em jogabilidade, seja em possibilidades oferecidas pelo mundo, seja no tom mais bem-humorado que a marca acaba assumindo.
Quem for desbravar o shopping de Willamette pela primeira vez, entretanto, vai ter em mãos um jogo claramente deficitário em vários aspectos que hoje simplesmente não poderiam chegar ao mercado neste estado, especialmente na condição de remasterização de luxo. Ele mais disfarça os seus problemas evidentes e históricos do que tenta realmente saná-los. Não adianta você trocar toda a lataria de um carro se ele ainda insiste em apresentar problemas no motor.
Remaster de luxo, mas não muito
Dead Rising Deluxe Remaster é uma experiência quase intocada, a despeito da revitalização gráfica. Ele ainda é o mesmo jogo que conhecemos em 2006, o que certamente é uma qualidade, mas o fato de não ter implementado as notórias melhorias de seus antecessores e ainda assim querer se vender como um produto que passou por um tratamento especial acaba prejudicando bastante a sua função de reativar a série dentro do mercado de jogos atual.
Obviamente, ele nunca se vendeu como remake, mas se você vai lançar algo que passou por um tratamento alegadamente deluxe, ao menos ofereça um produto deluxe que se imponha de verdade sobre a remasterização mais simples lançada em 2016.
Prós
A reforma promovida na arquitetura do shopping conseguiu torná-lo mais verossímil e agradável de se percorrer;
O novo esquema de controle é provavelmente a melhoria que melhor alcançou o equilíbrio ao revigorar a jogabilidade antiga ao mesmo tempo em que não a descaracteriza;
A possibilidade de avançar o tempo de jogo manualmente foi a melhor preocupação do time de desenvolvimento em sanar um defeito histórico do game?;
Dentro de suas limitações históricas, ainda pode ser bastante divertido.
Contras
Novos modelos dos personagens bastante descaracterizados e que conseguem ser mais desagradáveis do que os que estão em baixa definição do original;
Faltou ousadia na implementação, mesmo que de forma precária, de sistemas que posteriormente se tornaram marca registrada da série;
A revitalização dos sistemas de jogo foi muito tímida e pouco substancial na experiência geral do game;
Problemas de desempenho que poderiam fazer sentido há vinte anos, mas hoje não;
Novas audiências podem ter problemas em se adequar à pegada mais arcaica do jogo como um todo.
Dead Rising Deluxe Remaster — PC/PS5/XSX — Nota: 6.5
Lúcio Amaral é jornalista e advogado pós-graduado em Direito e Processo Trabalhista. Certificado de Estudos Aprofundados em Psicanálise. Ganhador do II Prêmio de Rádio e Jornalismo em Saúde e Segurança do Trabalho, promovido pelo MPT em 2008.
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