A força de uma pesquisa nem sempre está nas respostas, mas nas perguntas que ela desperta. O dado revelado pelo Datafolha — 59% dos brasileiros preferem ser autônomos a ter um emprego com carteira assinada — não é apenas uma estatística sobre preferências laborais. É um sinal de mudança cultural profunda.
No Brasil do século XXI, a centralidade da carteira assinada já não é consenso. Entre os jovens de 16 a 24 anos, 68% valorizam mais a autonomia do que a estabilidade. Essa não é apenas uma recusa à CLT — é uma afirmação de novos valores: liberdade de tempo, flexibilidade de renda, controle sobre a própria trajetória.
Ao mesmo tempo, o desejo por proteção não desapareceu. Dois terços dos entrevistados ainda consideram importante ter vínculo formal, mesmo que com menor remuneração. A contradição é apenas aparente. Ela revela que os brasileiros não abandonaram a ideia de segurança — apenas deixaram de associá-la exclusivamente à estrutura do emprego tradicional.
O fenômeno é global. No México, pesquisas mostram que 65% dos trabalhadores aspiram a ter seu próprio negócio. Na Argentina, metade da população ativa prefere o trabalho independente. Em Portugal, mesmo com baixíssima informalidade, cresce o número de jovens que desejam flexibilidade e experiências múltiplas. Há uma transformação silenciosa em curso — impulsionada pela digitalização, pela informalização da economia e pela reconfiguração das expectativas.
No Brasil, esse processo se dá em paralelo a um mercado de trabalho ainda marcado por desigualdades. Entre os mais pobres, a preferência pela carteira é mais alta. Entre os mais escolarizados e de renda elevada, o desejo de autonomia predomina. A informalidade, por sua vez, já abrange 39% da força de trabalho — com cerca de 25 milhões de pessoas atuando por conta própria, a maioria sem CNPJ.
O dado do Datafolha precisa ser lido nesse contexto. Não se trata apenas de preferência. Trata-se de adaptação. Em muitos casos, ser autônomo não é uma escolha vocacional, mas a única forma de inserção possível. O que surpreende é que, mesmo assim, a ideia de autonomia tenha se consolidado como valor social.
Isso exige respostas sistêmicas. O Brasil precisa atualizar seu pacto institucional com o trabalho. Significa repensar o modelo educacional, hoje voltado majoritariamente para formar assalariados, e não empreendedores. Significa redesenhar a política previdenciária, para que autônomos e informais possam contribuir de forma realista, contínua e proporcional à renda. Significa também criar novas formas de proteção social — desvinculadas do contrato clássico de trabalho e ancoradas na renda, na contribuição e na atividade produtiva.
Essa mudança não deve ser romantizada. A informalidade, quando estrutural, limita a produtividade e aprofunda a desigualdade. Mas tampouco pode ser tratada com desprezo jurídico ou moral. O Brasil não voltará a ter um mercado de trabalho majoritariamente formal nos moldes do século XX. O que está ao nosso alcance é construir um ambiente regulatório moderno, que acolha a diversidade de formas laborais com inteligência e coerência fiscal.
Os dados do Datafolha não dizem apenas o que os brasileiros querem. Eles dizem o que o Estado ainda não entregou. O setor privado já percebeu esse movimento — tanto que plataformas digitais, redes de serviços e marketplaces têm ganhado tração justamente por oferecerem meios para que milhões possam gerar renda em formatos não tradicionais.
Na Esfera Brasil, esse debate tem ocupado espaço crescente. A Casa ParlaMento está de portas abertas para contribuir com um novo modelo de regulação, previdência e inclusão produtiva. O Brasil precisa sair da inércia institucional e reconhecer que a economia do século XXI exige muito mais do que uma reforma trabalhista: exige um novo pacto com o tempo, com o talento e com a transição digital.
*Camila Funaro Camargo Dantas – CEO da Esfera Brasil e do Instituto Esfera de Estudos e Inovação
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