O carinho coloca o tempo em outro ritmo.
Recebi a visita de uma gata há uns dias. Sem convite, ela entrou em casa quando abrimos o portão. Sem chaves, abriu sorrisos em uma noite. A gata miava e deduzi: queria comer. Servi pão francês e frango desfiado, uma cenoura, que ela recusou, e água. O encontro poderia ser casual, um ato de solidariedade entre estômagos que sentem fome. Mas não. A gata se alisava em minhas canelas, deitava entre meus pés, olhava meus olhos e acenava com as patas enquanto me expunha a barriga.
Sem ter sido convidada, sentia-se à vontade para convidar. Ocupei o chão da cozinha e ela veio para perto. Encaixei sua pequena cabeça em minha mão e ri de seu tamanho. Ela seguiu com a manha. Tenho um pouco de medo de gatos, demoro a confiar que não vão me arranhar ou abocanhar meus dedos. Se a felina percebeu, estava disposta a me dar provas de amizade. Com seu corpo siamês, afagou minha pele até deitar. Logo as pernas cruzadas com ela no centro demonstraram: o laço se fez.
Então ficamos por minutos ou horas ali, plantadas rente à terra. Uma gatinha no colo ocupa as duas mãos para acariciar e não sobra nenhuma para remexer notificações. Paramos de nos beliscar, eu e o tempo. É que ele não resiste à presença de gracejos e respirações sincronizadas, embala essa cena e assume seus contornos; deixa de espetar costas e atravessar barrigas; envolve as curvas e se move como rede.
“A companhia de verdade, achava ele, era aquela que não tinha por que ir embora”, escreveu Valter Hugo Mãe em O Filho de Mil Homens. A verdadeira companhia dá motivos para ficar, mas prescinde de argumentos, pois, por si só, é a razão de permanecer. Lembro quando meu pai adoeceu e ficávamos quentes, um colado ao outro, respirando na mesma ondulação. Nunca estivemos tão próximos. As palavras já eram difíceis e o pulmão, ruidoso. Hoje posso considerar que ele estava ronronando. Naqueles encontros, sei que o tempo foi fisgado e ficou nos orbitando, mas ele tem o seu trabalho; desata como esteira e nos leva junto. Ainda assim, o momento é como essência: uma gota perfuma um dia todo.
É por isso que acredito na importância dos minutos. É nas menores frações que o tempo não se reconhece, como um ser humano não pode ser reconhecido quando visto apenas um pedaço. O tempo visto inteiro pode ser aterrorizante, mas pequenininho é do tamanho da gente ou da cabeça de um gato. Dedico atenção aos minutos, pois é neles que a vida se dá. Matilde Campelho disse que: “A poesia, a música, uma pintura não salvam o mundo. Mas salvam o minuto. Isso é suficiente”. O tempo é o fio pelo qual passam as pérolas dos momentos e é delas que depende a beleza do colar. É nos minutos que faço as pazes com a vida, que me alio ao tempo. O carinho, constato, amansa a velocidade do cordão. A gata foi embora, meu pai mudou de plano, mas o tempo encapsulou aquelas sensações em mim. Acho que é desse jeito que uma nova célula nasce.
Imagem: Reprodução
Victória Rincon é uma talentosa escritora, jurista e poetisa que traz uma riqueza única de experiência e sensibilidade ao mundo das palavras. Com dois livros publicados na área jurídica e uma paixão ardente pela crônica e poesia, ela é uma figura multifacetada que deixa sua marca distintiva em tudo o que faz.