Dedicado a Júlia
O facho de luz incidia sobre seus olhos ao mesmo tempo que as cortinas corriam lentamente a janela. Do fone instalado próximo à cabeceira da cama, a voz surgia como uma canção ao pé do ouvido: Bom diaaaaaa! Querido, é melhor você se apressar, para não chegar atrasado hoje na escola. Sabia que dentro em pouco seria a vez do pai, com batidas à porta: Filho, vamos, apresse-se! Hoje tenho que chegar mais cedo na empresa. O quê?!! Você ainda está de pijama? Como assim?!! Mas, sorte a sua, seu pai não estava em casa! Porém, seu pai sabia que podia contar com Marta. Como o sensor não indicou que o chuveiro havia sido ligado cinco minutos depois que as janelas do quarto haviam sido abertas, Marta continuou: Querido, você quer mesmo se atrasar? Seu pai não vai gostar nada de saber disso quando voltar, dizia a doce voz de Marta ao fone. Vamos, meu anjo. O garoto então levantou da cama, e a água do chuveiro se fez ouvir. Ao pé da porta da cozinha, já com a farda da escola, observou seu café da manhã que saía de uma espécie de micro-ondas. Então se aproximou. A voz de Marta, vinda do fone instalado na cozinha, falou: Espero que você goste, meu anjo. Baseei-me no que você vinha comendo ultimamente, com 98,2351487932% de probabilidade de acerto, e na sua dieta, com 99,58246952256632%.
Mal o garoto saiu puxando sua mala de rodinhas com o material escolar, o carro parado em frente à casa ligou. No painel, o endereço da escola. Ao travar a porta e o cinto de segurança, o automóvel começou a rodar automaticamente. Seu pai deveria passar uns quinze dias fora. Voltaria e depois deveria viajar novamente a negócios. Mas não haveria problema. Tinha deixado a rotina do garoto aos cuidados de Marta. Tudo programado e cronometrado: alimentação, hora de dormir, hora de acordar, hora de estudar, hora de assistir a desenhos e hora de brincar.
Enquanto o carro rodava, o garoto observava através da janela a paisagem que passava rapidamente e tentava retê-la por mais de um segundo. Quando o automóvel parou em um sinal, pôde ver algumas crianças brincando no meio da rua. Eram pedintes. Por causa da violência, seu pai nunca o deixava sair do condomínio. E ele ainda dizia: Quem vai querer ir para fora quando, em casa, pode-se estar em todos os lugares? Engraçado, ele nunca fez uso disso em suas reuniões, pensava o menino.
Era uma fila enorme. Um a um os carros paravam em frente à escola. Como numa fábrica de montagem, o carro da frente deixava a criança, que descia sozinha, dando lugar ao automóvel logo atrás, de onde outra criança descia puxando sua mala de rodinhas, até que o carro que o levava estacionou e ele desceu puxando sua mala de rodinhas.
Um dia o garoto disse enquanto jantava: “Marta, você poderia recriar o som da voz da minha mãe”? Marta ficou calada por alguns segundos. “É que eu não a conheci. Meu pai me mostrou algumas fotos e… ” De repente, a voz vinda dos fones que havia na cozinha surpreendeu o garoto. Uma voz aveludada. Morna. Macia. Era a primeira vez que ouvia aquilo, mas ao mesmo tempo lhe soava familiar. Talvez dos tempos em que fosse um feto, em que sua mãe, conversando com ele, acariciava a barriga. Assim, meu anjo?
E então o jovem principezinho… Marta percebe-o roncando e lentamente as cortinas se fecham, e as luzes, a meio-tom, desligam.
“Marta?”
Oi, meu anjo…
“Posso te chamar de mãe?…”
“Vou precisar passar mais tempo fora do que imaginei.”
“Ok, pai.”
“Não se preocupe. Deixei sua rotina na função repeat, caso eu fosse demorar aqui.
“Ok, pai.”
A imagem da tela se desfez de repente e o vídeo se apagou.
“Tchau, mamãe”. Tchau, meu anjo, respondeu a voz vinda do interior do carro. Meu filho… O garoto parou de repente com a mochila de rodas e olhou para trás. O carro ficou por alguns segundos com a porta aberta. “Oi, mãe. Quer me dizer alguma coisa?” Eu… eu… Você não… não está esquecendo nada? “Não, mãe! Tchau, te amo! Eu… eu também te amo!
“Ah, mãe. Sabe aquela menina que eu te contei outro dia?”, disse o garoto à imagem do monitor que reproduzia o rosto da mãe.
Sei.
“Acho que tô gostando dela.”
Verdade?
“Verdade. Só tem um problema.”
E o que é?
“Ah, mãe. Ela nem sabe que eu existo… Mãe?”
O que, minha vida?
“Como foi a primeira vez em que a senhora se apaixonou por alguém?”
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“Mãe, abre a porta, por favor, deixa eu sair…” O carro estava estacionado em frente ao parque. Crianças brincavam no escorrego, no balanço e no pula-pula, numa grande algazarra. Todas acompanhadas de seus pais. Marta havia se associado ao sistema do automóvel.
Eu não sei.. Não sei o que seu pai vai dizer quando ficar sabendo…
“Mas mãe, por favor, eu nunca vim aqui no parque da cidade, por favor…”
Tá bom, tá bom… Eu não acho que seja uma boa ideia! Só um pouquinho, ouviu? Vou estar aqui te esperando!
A porta do carro abriu e o garoto desceu. Correu pra brincar no parque e logo se enturmou com as outras crianças. Acenou em direção ao carro, que buzinou.
Até que ele chegou com uma garota bem vestida. Largou a mala ali no chão e gritou pelo filho. Um pouco aborrecido, porque tinha perdido a oportunidade de fechar ótimos negócios, mas tinha novidades! Soube que seu filho estava com um pequeno acesso de tosse, nada preocupante, Marta havia lhe dito, e ela cuidava do menino e o medicava. Choveu, ao contrário do que diziam as previsões, e o garoto pegou aquela chuva. Ficou brincando com outras crianças no meio da chuva, jogando bola na lama, como nunca havia feito na vida. Agora andava quase todos os dias na rua. Marta fazia-lhe todos os gostos.
Bom dia, como foi sua viagem? Espero que bem, disse a voz que saía dos fones instalados na sala. O homem teve um sobressalto. Largou a mão de sua acompanhante. Olhou de um lado a outro. Aquela voz…. Gritou: ÉRICA? ÉRICA?!! Foi como se tivesse visto um fantasma.
O facho de luz incidia sobre seus olhos ao mesmo tempo que as cortinas corriam lentamente a janela. Do fone instalado próximo à cabeceira da cama, a voz surgia ao pé do ouvido: Bom dia! Dentro em pouco o café do senhor será servido. Meu nome é… Ao ouvir aquilo, o menino teve um sobressalto e pulou da cama. Correu até a cozinha e deu de cara com o pai e a garota que havia chegado com ele, os dois tomando café. “MÃE? MÃE? MAMÃE?!!”, gritou o garoto, correndo de um lado pro outro feito louco. “Bom dia, meu filho. Mãe? Como assim? Que história é essa de mãe?”
“Marta… Marta… O que houve com Marta?”
“Marta apresentou um problema. Não sei se um vírus ou sei lá o quê. Bom, seja lá o que for, já era um programa obsoleto. Mas já resolvi isso.”
Imagem: Edward Hooper – La mujer detrás de la carrera