Começava sempre com uma prece. Depois o choro — já que prece não adiantava muito — e logo descobriu também que o choro de nada adiantava. A porta sempre entrava como numa rajada de vento e fúria. E então vinha o som forte das pisadas no corredor. E os insultos e os rugidos e o som de qualquer coisa que se partia ao chão.Vinha a colisão de músculos e ossos. E quanto mais gritos se dava mais se ouvia a colisão entre músculos e ossos e gritos e ais. Sempre ao anoitecer, toda vez que voltava do bar —, era assim —: feito uma ladainha.
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Não sabia se era ali, longe do Céu, o Paraíso.Mas sabia que era ali, guardada na escuridão de um guarda-roupas, onde sentia-se melhor.Embora A Fera, descontrolada, tenha a arrancado de onde boiava,feliz uma vez — de onde achava que estava protegida. Foi quando chutou o ventre daquela mulher a qual Deus nunca atendia-lhe as preces, então veio ao mundo: com choro e sangue e ranger de dentes.Era uma noite de lua cheia .
A Fera tinha lá suas artimanhas. — Ela também —: invisível, dentro da escuridão de um guarda-roupas.
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Tinha a boca da fera, os olhos da fera o cabelo da fera. Talvez isso explique quando furou o braço de uma coleguinha com um lápis e tomou 15 dias de suspensão. 15 dias em casa e um olho roxo: pra aprender a ser gente!
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A noite vem e com ela, a lua. A mulher a quem Deus nunca atende as preces está na cozinha com a bíblia e com o terço na mão e os joelhos dobrados. Ela teme a escuridão e a lua porque ela sabe que com a lua a Fera vem puxar-lhe os cabelos e encher-lhe de socos e pontapés. Melhor do que a bíblia, descobriu a garota, era a faca com que fazia cortes no braço toda vez que chegava a noite, mais rápida do que anjos ou Deus, a faca. Que guardava consigo dentro daquele guarda-roupas.
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Escondendo-se num mar revolto de cabelos. Escondendo num moletom encardido os pequenos caroços que saltavam agora do peito e os cortes feitos no antebraço. Não era como as outras garotas, que se olhavam no espelho. Não era como as outras garotas, que se editavam no celular. Por mais que quisesse desaparecer, seu corpo teimava em se exibir no espaço. Se deu conta quando escolheram-na a mais bela garota da sala — Para riso geral.
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Então Deus um dia enviou-lhe um anjo. Era o garoto mais bonito da escola. Tinha os cabelos encaracolados, olhos azuis e a pele clara. Levou-a para os fundos do quarto da casa dele que a beijou,e a despiu e a deitou em sua cama feita de nuvens — não havia ninguém em casa. “Não se preocupe”, disse ele — não farei nada que você não queira — e tudo que ela quis era estar longe da Fera. O sangue manchou o lençol. Foi como a faca fazendo seu corte. Deixando uma marca.
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Vômito, choro, desespero: dentro do banheiro da escola, o resultado do exame de urina em suas mãos trêmulas, — 14 anos de idade! Contou para o anjo, que não quis saber. Afinal, tinha namorada! — 14 anos de idade! — Tudo não passou de um desafio no grupo: sinto muito. Contou para ela, que chorou, que puxou os cabelos enquanto os joelhos feridos de tanto dobrar iam novamente ao chão — Oh,Deus, meu Deus! O que fiz para merecer isso!? — dizia aos gritos a mulher a quem Deus nunca lhe atendia às preces batendo no próprio peito e puxando a blusa, arrancando de lá seus botões, e que se levantava agora, acertando um tapa em seu rosto.
Sinto muito
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A mulher a quem Deus nunca atendia às preces agora sempre chorava, se lamentando, pelos cantos: pelo o que era sua vida, pelo que seria a vida da garota.Com a cara no vaso sanitário, com as mãos em volta da borda, a garota escutava a cama e o quarto sacudir, ainda que houvesse choro. A ir sair rapidamente do banheiro, limpando ainda o resto de vômito, deu com “a Fera”: Estava encostada em frente à porta do casal acendendo um cigarro. Tinha a braguilha semiaberta. A lua que entrava pela janela atingia-lhe o rosto, que sorriu para ela. — Que foi? Parece que tá vendo um bicho? — A garota passou rapidamente e foi em direção a seu quarto. Ao olhar para trás, para ver se não estava sendo seguida, viu quando A Fera depositou um pó branco sobre a mesa e o inalou — Quer? — A porta do quarto se fechou num estrondo.Do outro lado, gargalhadas.
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A culpa não foi sua, foi dela. Ela que começou tudo, quem lhe xingou primeiro. Foi ela que a empurrou lhe chamando de puta, de vadia de piranha. Teria o bebê que carregava há três meses — querendo ele ou não — Sua mala já a aguardava em casa. Iria partir de qualquer jeito. Ele respondeu que tinha um tio seu que trabalhava numa farmácia e poderia lhe arranjar Cytotec. Foi o máximo de ajuda que o anjo lhe ofereceu. Então sua namorada chegou. Tinha pego uma conversa dos dois no celular marcando um encontro. Aproximou-se dizendo que não acreditava que o anjo um dia pudesse a trocar “por aquilo”, foi disso que a chamou. E de puta, e de vadia e de piranha, sim! E só daí vieram os empurrões. A garota desequilibrou-se, caiu. O anjo intercedeu, segurando sua namorada. Então a garota fez o que sabia fazer de melhor: num rápido movimento, ao se levantar, atingiu-a com o estilete que levava guardado consigo, vazando seu olho. …………………………………………………………………………………………………..
Eu não vou deixar você partir assim sozinha! — falava a mulher a quem Deus nunca lhe atendia às preces, de joelhos, agarrada a sua mão.
Eu não posso… não posso ficar aqui! — disse a garota arrastando uma mala — tão vindo aqui me pegar!
Eu não vou deixar! Só se for por cima do meu cadáver! — a cada movimento da garota, a mulher a quem Deus nunca lhe atendia às preces chorava segurando-lhe à mão
Você não percebe…Não percebe que já está morta?
Não! Não! — dizia a mulher, beijando as mãos da garota, sendo arrastada junto a mala pelo chão. De repente, a porta abre como um tufão. A Fera coloca seu pé dentro de casa, observando a cena. Em sua mão, uma garrafa de álcool. Ele senta cuidadosamente e desabotoa o cinto enquanto conversa: Uma estocada no olho? Você anda bem espertinha, né garota? Por essa não esperava… na filha de um amigo… por essa eu não esperava… — diz enquanto enrola o cinto na mão e entorna outra dose de álcool — minha filha!
Você não é meu pai!!
Não?
Não, nunca foi!!
É, e o que sou? Vou aí pra você dizer bem aqui no meu ouvido…
A Fera se levanta com o cinto na mão e vai em direção à garota. Antes disso, a mulher a quem Deus nunca lhe atendia às preces intercede, ficando no meio do caminho. A Fera espanca a mulher com socos e pontapés e a fivela do cinto, tirando sangue de sua boca. A garota se aproxima da Fera, e a acerta na altura do peito com a faca. A Fera cai debilitada segurando o sangue que sai em esguichos. E quanto mais o sangue sai em esguichos a garota acerta mais uma vez. E mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez….
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Dentro da cela a assistente social pede para descrever algo de sua vida — as imagens que chegam como cenas cortadas de um filme, em flashes. Sua mãe veio lhe visitar hoje. Que bom. Falta três meses para ter o bebê. As outras garotas pensam em fazer uma festa. Dão palpites sobre o nome da criança. Agora é noite. A garota pode dormir no duro dum colchão de uma cela minúscula que divide com elas. Sem medo, sem bicho, sem nada.