Morreu Mujica, morreu o Papa. Não os acompanhei de perto, mas os lampejos que tive bastaram para saber: admiro-os fervorosamente.
Assisti a um vídeo em que Mujica falava sobre o tempo que empregamos no que gostamos e destacava a importância disso para uma vida com sentido, quem sabe até feliz. Ele dizia ser preciso reservar espaço para as nossas loucuras — uma filosofia fora de moda, talvez por não custar dinheiro. Completava que, caso não decidamos o que queremos, o mercado decidirá por nós e compraremos coisas com o próprio tempo convertido em moeda. O ex-presidente uruguaio falava de política, consciência de classe, filosofia, espiritualidade, arte, tudo de maneira tão conectada, natural e genuína que me parece uma tela composta de várias cores que, juntas, formam uma imagem nítida, uma manifestação evidente de sabedoria e sobriedade.
Com o Papa tenho uma relação parecida: o ouvi poucas vezes, mas o suficiente para perceber seus valores. Reconheço sua bondade, simplicidade, senso de justiça e o profundo amor pela existência como criação de Deus, que também podemos conceber como Algo Superior. Uma entrevista me marca: ele estava no Brasil e o repórter perguntou sobre sua recepção em terras verde e amarelas, diante da rixa que temos com os argentinos. Bem-humorado, Francisco respondeu que a disputa estava resolvida: o Papa era argentino, mas Deus, brasileiro. A autoridade máxima da Igreja fez uma declaração pública em forma de piada! E, como pequenos terremotos, os risos racharam a rigidez.
O Pepe e o Papa são figuras que me lembram da relevância de acreditar em algo que vai além de nós, individualmente. Seja um projeto político ou religioso, artístico ou científico, é preciso ter o que nos humanize e, ao mesmo tempo, não nos torne sisudos. Depois da pandemia, ficou muito claro que não estamos tão distantes quanto parecemos. Um vírus surge em um lado do planeta e rapidamente se dissemina. Assim ocorre com as ideias. Assim ocorre com os bens. Cada um em seus meios.
Eduardo Galeano, em “O Livro dos Abraços”, escreveu um texto curto e sensível sobre a função da arte. Nele, lê-se que um pai levou seu filho para ver o mar pela primeira vez e o menino ficou “mudo de beleza”. Quando finalmente conseguiu falar, pediu ao pai: “me ajuda a olhar!”. A arte é uma referência e precisamos desses guias para compreender o mundo — modelos de sentido, mas também de pessoas. Penso como uma brincadeira: se eu fosse um trabalho acadêmico, quais referências seriam listadas ao meu final? Até minha morte, em quantas listas estarei?
“No princípio era o Verbo (…) e o Verbo se fez carne” (João 1:1,14). Palavras encarnadas têm efeitos palpáveis. Tanto o Papa Francisco quanto Pepe Mujica, exemplos disso, expressaram a força dos que desejam criar mundos onde a fraternidade seja possível e a beleza presente. Por esse motivo, são referências e nos ajudam a olhar. Ao morrer, retornam ao Verbo. E, em nós, fazem-se carne.
Imagem: Pinterest
Victória Rincon é uma talentosa escritora, jurista e poetisa que traz uma riqueza única de experiência e sensibilidade ao mundo das palavras. Com dois livros publicados na área jurídica e uma paixão ardente pela crônica e poesia, ela é uma figura multifacetada que deixa sua marca distintiva em tudo o que faz.